CONTO - Promessa de Sangue

Título: Promessa de Sangue
Classificação: +16
Gênero: Ação.
Sinopse: A força de uma promessa pode levar uma pessoa as últimas consequências. A esperança de um reencontro é a única coisa que o faz seguir em frente. Dois irmãos brutalmente separados esperam pelo dia em que poderão estar novamente juntos. 

PROMESSA DE SANGUE



Hoje é o dia.
Hoje finalmente poderei cumprir a promessa que fiz a Dahak.
Dahak era ainda um garoto quando nos levaram, capturados como animais sem nenhum respeito ou dignidade. Minha mãe costumava rezar aos deuses antes de nos pôr para dormir, ela dizia que fazia aquilo para que Júpiter e Netuno nos protegessem enquanto meu velho pai estava em alto mar pescando para nos sustentar. Eu nunca havia questionado nem contestado aquele velho costume que ela tinha, eu até chegava a acreditar que tínhamos essa proteção divina, eu rezava, e dizia a ela que mais tarde ensinaria meus filhos a rezarem também.
Bobagem.
Onde estavam os poderosos deuses quando o exército romano invadiu nossa pequena vila? Quando aqueles malditos soldados estupraram, massacraram, queimaram e capturaram os cidadãos que ali moravam?
Foi naquela noite que minha crença nos deuses chegou ao fim.

Não há um só dia em que eu não sonhe com aquela noite horrível, é como um pesadelo que insiste em se repetir. No início eu acordava assustado, suando e chorava. Sim, eu chorava. E porque não o faria? Um homem antes de ser homem é um ser humano com alma e coração. Não vejo meu choro como fraqueza, aquilo me tornou mais forte. Me tornou o que sou hoje.
Era tarde da noite quando o exército chegou, minha mãe havia acompanhado meu pai para ajudá-lo na pesca, Dahak e eu ficamos em casa cuidando de tudo. Eles invadiram e saquearam todas as casas, capturaram alguns e mataram o restante, meu irmão e eu fomos capturados. Meus pais? Nunca mais tive notícias...
No início cheguei a desejar que tivessem me matado. Desejava que ao invés de estar algemado naquela enorme fila de novos escravos eu estivesse na pilha de corpos deixados para apodrecer. Desejei isso por mais de uma vez porque eu sabia o que me aguardava... Pelo menos era o que eu achava...
- O que vai acontecer conosco Darcon? – Dahak sussurrava entre as grades que nos separavam.
- Seremos vendidos. – eu cuspi as palavras. – Vendidos como animais, para servir aos senhores de Roma.
- Juntos? – ele me perguntou com esperança na voz.
Dahak era apenas um garoto de 16 anos, o que ele sabia sobre o mundo? Ele tinha tanto para viver, tanto para ver e tudo isso foi por agua abaixo.
- Eu não sei... – disse finalmente. – Podemos ter essa sorte, porém não sabemos...
- Eu sei. – ele disse. – Os deuses irão nos ajudar.
- Os deuses? – eu ri com desdém. – os deuses não vão nos ajudar, como nunca o fizeram. Os deuses não existem.  
Um silencio incomodo permaneceu por algum tempo.
- Dahak... Eu vou lhe fazer uma promessa. – eu o encarei – um dia... não sei quando... mas um dia nós seremos novamente livres, você será novamente um homem livre. Eu irei comprar nossa liberdade e ainda que nos separem eu irei te procurar, nem que eu precise revirar Roma, mas irei encontra-lo, ainda que tenha que sacrificar minha vida, você será um homem livre.

A única esperança que eu tinha naquele momento era que ficássemos juntos mas isso não aconteceu...
Fomos expostos como objetos em uma feira para que fossemos vendidos.
Um velho baixo e gordo se aproximou com um certo fascínio nos olhos.
- E então Hagar, o que tem para mim hoje? – ele falou sem tirar os olhos da longa fila.
- Carne fresca meu senhor Ilainus. – nos apontou e fez uma pequena reverencia para o velho – Carregamento novo vindo de Trácia e Gales. Imagino que o senhor vá ficar satisfeito com a mercadoria – ele sorriu com ambição
           - Isso é o que veremos. – o homem falou com desdém e subiu ao palanque onde nos encontrávamos.
           Ele passou, um a um, fazendo observações e conversando com um jovem moreno que o acompanhava. Escolheu alguns e os pediu para que descessem, parou na frente de Dahak e o observou com atenção.
           - Jovem... Mas... Não, esses braços finos irão dar muito trabalho. Não aguentaria cinco minutos de treino... e essas pernas? Se quebrariam na primeira queda. Além de ser um tanto baixo...
           - Meu senhor, olhe com atenção, ele tem potencial. Deu muito trabalho aos soldados quando foi capturado. – o vendedor insistia, mas o homem sequer lhe deu atenção.
           - E esse aqui? – ele levantou meu queixo com o punho de sua espada. – Como se chama escravo?
           Eu o ignorei.
           - Eu. Perguntei. Como. Se. Chama? – e me deu um soco.
           - Darcon. – falei e cuspi o sangue que se acumulou.
           - Hm... é forte, alto... – ele me olhava com atenção. – sua petulância será um problema que logo poderemos resolver com um chicote. Vou leva-lo. Acerte tudo com Hagar e leve-os para casa. – o velho deu ordens para o homem que estava ao seu lado. – Por hoje é só.
           Essa foi a última vez que vi Dahak e isso já faz cinco anos.
           Me tornar um Gladiador não foi algo de minha escolha mas talvez tenha sido o melhor, assim pude, durante esses longo cinco anos, juntar uma boa quantia para poder finalmente cumprir a promessa que fiz ao meu irmão. A certeza que tenho é que hoje ao pôr do sol finalmente seremos livres.
           - Senhor. – eu fiz uma reverencia forçada. – tem notícias de Dahak?
           - Darcon, meu campeão. – Dominus falou animado. – eu já ia mandar Doctore te chamar, minha boca guarda excelentes notícias para você. Encontrei seu irmão, ele estava mais perto do que você poderia imaginar.
           - Isso muito me alegra, meu senhor. E quando poderei vê-lo? Sabe se seu senhor está interessado em vende-lo?
           - Logo mais à tarde, no torneio, o encontro já foi marcado. O senhor Phobos se mostrou muito interessado em minha proposta. – ele me olhava ainda animado.
           - Obrigado meu senhor, não vejo como posso lhe agradecer. – pela primeira vez minhas palavras eram sinceras. Fiz uma nova reverencia e sai.

           - Quer dizer então que essa é a última vez que nos vemos? – A linda escrava falou enquanto entrava em meu quarto.  – depois disso o grande Darcon será livre e viajará pelo mundo?
           Em seus olhos era possível notar a alegria que sentia por mim mas ela nunca conseguia esconder seus sentimentos, e além de grande alegria eu podia notar sua tristeza por minha partida.
           - Leah... – eu atravessei o quarto e a tomei em meus braços. – Não sabe o quanto se engana.
           - Darcon, - ela sorria mas não conseguia disfarçar a tristeza em seus olhos. – estou feliz por você e por Dahak, mas sentirei sua falta. – ela me beijou.
           - Não posso dizer o mesmo. 
           - Não vai sentir minha falta? – ela se afastou.
           - Porque o faria se a levarei comigo? – dei um sorriso.
           Leah arregalou seus lindos olhos verdes. Ela parecia não entender.
           - A luta de hoje – expliquei. – valerá muito, será uma luta especial segundo Dominus... Ele me prometeu que se eu me sair bem há possibilidades de que hoje eu ganhe a Rudis.
           - Darcon – ela me olhava feliz e incrédula- isso é maravilhoso.
           - E ainda que eu não a receba consegui juntar o suficiente para nós três, - passei os dedos na maçã de seu rosto e deslizei até uma mecha de seu cabelo negro -  minha bela Leah, minha intenção nunca foi deixar-lhe nesse lugar. Sou um homem de palavra e quero que se recorde da primeira vez em que estivemos juntos, aqui, nesse mesmo quarto – passei os olhos pelo cômodo - deitados naquela simples cama, lembra-se da promessa que lhe fiz? – eu agora a olhava nos olhos. - Ainda que o mundo conspire contra mim, ainda que eu precise enfrentar um exército romano...
           - ...nós ficaremos juntos, porque nada, nem mesmo uma legião de soldados poderá tirar-te de meus braços. – ela completou minha fala com as exatas palavras que eu havia lhe dito. 
           Antes de conhecer Leah meu único desejo era encontrar Dahak, mas ao toma-la em meus braços tudo mudou. O desejo de alcançar a tão sonhada liberdade com meu irmão não havia mudado mas agora havia uma outra alma que eu precisava libertar porque sem ela a minha estaria sempre incompleta.
           Assim como Dahak eu precisava ver Leah como uma mulher finalmente livre. Não poderia deixa-la a mercê das vontades de Dominus e seus pervertidos convidados. Não, isso nunca. Ainda que fosse necessário que nos separássemos eu a veria longe desse lugar para que ela nunca mais tivesse que obedecer a ninguém, para que jamais tivesse que voltar a agradar alguém sem que essa fosse sua vontade.

            Ao longo de todos esses anos, por várias vezes atravessei as enormes grades e pisei nessas areias manchadas de sangue, o caminho é sempre o mesmo mas a sensação nunca é igual.
A cada nova batalha me sinto mais forte, mais capaz, mais mortal.
            Fui comprado exatamente para isso, Dominus viu em mim o potencial de um Gladiador logo à primeira vista e de fato não se enganou, ao longo de todos esses anos provei ser um ótimo lutador, provei ser um verdadeiro campeão.
Outros Gladiadores buscam com empenho chegar onde cheguei, conseguir o que eu consegui. Eu me tornei uma lenda, legiões de outros gladiadores tremiam ao som do meu nome e outros tantos ansiavam pelo dia em que poderiam me enfrentar e se provarem capazes. E eu? Eu sempre adorei isso. Se havia algo em que eu fosse realmente bom era em matar, no início não me agradava essa ideia mas depois... bom, a Arena pode mudar uma pessoa. Não que eu gostasse de ser um escravo, de ser tratado como um objeto, mas eu gostava da adrenalina de cada torneio e sabia que esse era a melhor maneira de conseguir dinheiro suficiente para ter de novo minha liberdade.
Talvez seja algo totalmente egoísta, sim, é algo total e completamente egoísta, mas a cada novo guerreiro que eu derrubava era menos um obstáculo para ver minha promessa ser cumprida.
Hoje mais uma alma seria ceifada pela lamina da minha espada.
A última.
A última alma que eu libertaria para finalmente poder me reunir com minha família.

            Eu esperava impacientemente que os jogos tivessem início, essa seria minha última batalha, minha última vitória e teria que ser épica para que assim a Rudis viesse para mim.
            Enquanto esperava olhava para a plateia, buscando ansiosamente encontrar aquele rosto familiar que há tanto eu não via.
Tantos anos se passaram, Dahak agora era um homem feito, será que eu reconheceria seu rosto marcado pelo tempo e pela dura vida de escravidão? Talvez não a essa distância, mas eu saberia, no instante em que olhasse em seus profundos olhos negros que havia finalmente reencontrado meu irmão.
Por vezes meus olhos varriam a plateia até chegar ao camarote principal, onde Leah servia vinho aos convidados. As vezes nossos olhares se encontravam e ela sorria, ela não precisava dizer nada, aquele sorriso já transmitia todas as palavras que seu coração guardava, e ela sabia que eu entendia, tantos anos de amor e cumplicidade fizeram isso. Nada precisava ser dito para que tudo fosse entendido.
            A primeira luta começou. Eu a assistia através das grades como sempre o fazia mas com uma impaciência desconhecida.
            Luta após luta a ansiedade e o nervosismo aumentavam, era como se não tivessem fim. Finalmente anunciaram a penúltima luta, só faltava essa e eu entraria.
Dominus veio abrindo caminho entre os Gladiadores e veio até mim.
            - Meu campeão! – ele elevou os braços.
            - Dominus. – fiz uma pequena reverencia. – Dahak está com o senhor?
            - Não meu caro, mas é justamente sobre esse assunto que venho tratar. Seu irmão está aqui e aguarda com ansiedade pelo reencontro que já não tardará. Vim avisar-lhe isso e desejar-lhe boa sorte em sua última luta. Você trouxe grande honra para esse Ludus e será sempre lembrado por isso, e hoje o grande Kýknos triunfará uma vez mais.
            Após algumas vitórias Dominus passou a chamar-me de Kýknos, o grande e esse novo nome me acompanhou em todas as vitórias que se seguiram. Eu nunca havia questionado o porquê desta escolha, apenas a abracei, pois foi naquele momento que a vida de um escravo ficou para trás dando espaço para um Campeão, que podia enfim cumprir a promessa há muito feita.
            - Essas palavras muito me alegram, senhor. – o olhei fixamente. – Dominus, eu poderia fazer-lhe uma pergunta que há muito me causa curiosidade?
            - É claro meu rapaz, pergunte.
            - Por que Kýknos?
            - Não conhece a história de Kýknos? – ele me encarou com certo desaponto.
            Apenas neguei com a cabeça e aguardei que ele continuasse.
            - Kýknos foi um dos muitos filhos de Marte, o deus da guerra. Ele não aceitava o fato de que todos os deuses possuíssem um Templo e seu grandioso pai tivesse sido deixado de lado, por tanto, ele decidiu construir o Templo de seu pai mas ele queria algo a mais, queria uma arquitetura original e que fizesse jus ao nome de Marte. Kýknos então resolveu que construiria o Templo de seu pai com ossos humanos. Ele matou muitas pessoas para que pudesse erguer o grandioso Templo – ele fez uma pequena pausa. – Entende agora meu rapaz? Kýknos ergueu um Templo a partir de suas vítimas, assim como você, você ergueu seu templo de honra e glória a partir dos ossos de todos os seus inimigos.
            - E o que aconteceu com Kýknos?
            - Essa é uma história para um outro momento. Mas saiba que você não terá o mesmo fim que levou o grande Kýknos. – ele me olhou – Marte está sempre lhe acompanhando e ele sabe que você honra o nome de seu filho luta após luta.
            - Com todo respeito meu senhor, mas há muito deixei de acreditar na existência dos deuses.
            - Ah, mas eles acreditam em você meu rapaz, e você faz muito mal em nega-los.
            Enquanto conversávamos a luta atrás de nós se encerrando e por fim terminou.
            - Bom, agora é a sua hora. – ele tocou meu ombro. – contamos com você para que a Glória esteja mais uma vez em nossa casa.  
            - Dominus. – Fiz uma nova reverencia e ele se retirou.
           
            - Povo de Roma. – um dos homens se levantou e iniciou seu discurso no camarote principal. A multidão se calou. – Hoje vocês verão a luta do século. Dois campeões se enfrentarão nessas areias, apenas um sairá vencedor.
            A plateia se incendiou mais uma vez, não havia como distinguir o que gritavam, mas eu saiba que logo gritariam meu nome.
            -  De um lado temos o grande Kýknos, Gaulês, da casa de Ilainus.
            Entrei e me coloquei no centro da Arena. Ergui minha Glades e deixei-me envolver pelo clamor da multidão que gritava meu nome e ansiava por sangue.
            - E para enfrentar nosso campeão invicto teremos Herácles, Campeão da casa de Phobos.
            Eu olhei para o lado oposto da Arena, onde um enorme homem atravessava as imponentes grades.  
            Ele deveria ser vários centímetros mais alto que eu, seu escudo cintilava à luz do sol e nele se encontrava manchas vermelhas que foram pintadas a partir do sangue de seus adversários, era possível notar várias cicatrizes de ferimentos graves por todo seu corpo exposto, seu rosto estava coberto por um elmo enorme e nada podia ser visto. Ele podia ser um gigante, um ogro ou um exército inteiro, nada me venceria hoje, nada tiraria minha liberdade de mim.
            - O que vocês não sabem – ele fez uma pausa – é que aquele que vencer essa luta sairá daqui mais do que como um Campeão, sairá daqui, como um homem livre. – ele ergueu a tão desejada espada de madeira. – Aquele que vencer esta luta sairá daqui com a magnifica Rudis. – o homem se fez ouvir do camarote. – Comecem!
            Herácles segurava sua espada em posição de ataque à frente de seu enorme escudo.
Nós nos encarávamos enquanto andávamos ao redor do centro da grande Arena, eu aguardava por sua investida e ele parecia fazer o mesmo.
Após uma volta e meia ele finalmente deu seu grito de ataque e correu em minha direção. Ele era rápido, ágil mas eu era muito mais e desviei de sua investida com extrema facilidade passando minha espada abaixo de seu ombro abrindo nele um pequeno corte.
Ele investiu novamente contra mim e eu novamente me desviei dele ampliando seu corte. Eu ri.
- É só isso que você tem, campeão? – eu cuspi a última palavra com desdém.
Ele me atacou de novo, mas desta vez não desviei e fui contra ele.
Nós iniciamos aquela dança mortal, a canção das laminas das espadas se chocando já me era conhecida.
O ataquei com meu escudo e consegui fincar minha espada em sua coxa esquerda. Ele urrou, mas sequer cambaleou. Sua espada atingiu minha orelha e um pedaço dela foi arrancado, aquele foi o único momento que me arrependi de não usar uma proteção. Aproveitando de meu momento de distração ele chocou seu escudo contra mim, eu desequilibrei e cai de costas na areia manchada de sangue.
Ele veio andando lentamente em minha direção, e eu aguardei pacientemente ainda no chão. Vislumbrei Leah rapidamente e tive as forças necessárias para um contra-ataque. Eu não iria facilitar, não iria perder. Ele finalmente chegou e ergueu sua espada para me matar, desviei de seu ataque e o atingi na coxa direita enquanto apertava o ferimento na outra coxa. Retirei a espada e o atingi na altura do estomago. Ele caiu.
Peguei sua espada e a segurei com a outra mão enquanto colocava um pé em cima do corte e pressionava. Ele ficou ali, deitado, impotente. Olhei para o camarote, esperando que Dominus fizesse um único movimento, colocando o polegar para baixo para que assim eu pudesse acabar com aquilo, ao invés disso ele se levantou e começou a falar.
- Na lenda, Kýknos, filho de Marte, foi assassinado por Herácles, este o impediu de construir seu templo, mas não desta vez. Herácles, campeão da casa de Phobos irá cair diante de Kýknos, campeão da casa de Ilainus e assim dar início a uma nova e grandiosa lenda. – a multidão foi à loucura e Dominus abaixou seu polegar, dando assim a sentença de morte.
Voltei meus olhos para o guerreiro caído e o ergui fazendo com que ficasse de joelhos. Ele já não lutava, sabia que sua hora havia chegado e iria morrer com honra, assim como todos os outros Gladiadores que haviam caído naquele dia.
Eu o encarava, pronto para pôr fim a sua vida, mas eu precisava de uma última coisa, precisava olhar em seus olhos quando enfiasse minha espada em seu coração. Era assim, desde o primeiro, eu olhava em seus olhos antes de envia-los para o Hades. Arranquei-lhe o elmo e segurei em seus cabelos para fazer com que me encarasse também. O sangue escorria no canto de sua boca e ele o cuspiu voltando seus olhos pra mim em seguida.
Naquele momento os gritos da multidão sessaram, ao menos para mim, a plateia continuava pedindo por sangue mas eu não podia ouvir mais nada. Encarei o Gladiador ajoelhado a minha frente uma vez mais e não tive dúvidas.
Passei a mão bruscamente, retirando o cabelo embebido em sangue e suor de seu rosto só para confirmar mais uma vez o que eu já havia descoberto.
- O que está esperando? Mate-me de uma vez. – seus olhos guardavam ódio.
- Dahak?
- Não atendo mais por esse nome. Eu sou Herácles, o invicto. E se assim deseja, vamos lutar novamente. – ele agarrou minha espada caída e se levantou.
- Dahak, não faça... – eu não tive tempo de terminar, Dahak investia contra mim com fúria.
Se fosse qualquer outro oponente já teria seu coração perfurado por aquela lamina, mas eu não podia fazer isso, não com meu irmão.
Eu estava em posição de defesa todo o tempo, e a cada investida que ele dava me sentia mais fraco. Ele começou a me golpear com o punho da espada, e eu nada fazia além de desviar de seus golpes.
- Está com medo de lutar? Vamos, lute! Vamos seu covarde, vamos lutar! – ele dizia em meio a golpes.
Eu não podia lutar, pela primeira vez, eu não podia.
- Vamos Darcon, vamos lutar. Não seja covarde, ambos sabemos que você não pode me vencer, mas vamos, não me desaponte – Dahak dizia rindo enquanto me cutucava com seu graveto de madeira.
- Agora não garoto, preciso buscar algumas frutas para a mamãe, se não voltar logo ela vai se irritar. - dizia impaciente.
- Ah não, só um pouco. Eu quero lutar. - ele continuava a me cutucar com a ponta de seu graveto. – sabe que esse é meu jogo preferido.
- Se eu ganhar, você me deixa em paz por um mês. – cedi por fim.
- Mas quando eu ganhar você será meu escravo por um mês. – ele falou animado atirando um graveto para mim.
- Feito.
E começamos a lutar. Rindo. Nos divertindo.
Duas crianças inocentes que não faziam ideia do que as aguardava no futuro.
Dois irmãos brincando alegres, como se nada mais importasse.
Por um segundo eu vislumbrei novamente aquele garotinho segurando um inofensivo graveto, mas não era um garoto e nem um inofensivo graveto, aquele que eu enfrentava era um homem com uma letal espada.
Eu cai de joelhos.
Rendido por fim.
E me recordei as exatas palavras que havia dito anos atrás para um outro Dahak.
Ele segurou a espada entre meu ombro e meu pescoço e olho para o camarote esperando a aprovação dos senhores que ali estavam. Eu voltei meu olhar para o mesmo lugar e olhei nos olhos de Leah que tinha as mãos sobre a boca e chorava incontrolável.
Eu o encarei e repeti, com dificuldade, as palavras que um dia havia lhe dito.

- Dahak... Eu vou lhe fazer uma promessa. Um dia... não sei quando... mas um dia nós seremos novamente livres, você será novamente um homem livre. Eu irei comprar nossa liberdade e ainda que nos separem eu irei te procurar, nem que eu precise revirar Roma, mas irei encontra-lo, ainda que tenha que sacrificar minha vida, você será um homem livre.
A fúria deu lugar a lembrança e no lugar dela veio o reconhecimento e a dúvida.
Ele me encarou em choque.
- Darcon? Não, não é possível, Darcon está morto. – ele me olhava nos olhos.
- Não meu irmão, eu estou vivo, e hoje em fim poderei cumprir a promessa que lhe fiz e que há tanto guardo dentro de mim. Por fim você será um homem livre.
Ele abaixou a espada e se ajoelhou diante de mim.
- Darcon. Eu... eu não sabia. – ele me apoiou e eu sorri. – me disseram que você havia morrido.
- Dahak, a Rudis, é sua e assim cumprirei minha promessa. Só peço que leve Leah com você, não a deixe nas mãos de nenhum Dominus. Cuide dela e ela com certeza cuidará de você.
- Mate. Mate. Mate. – os gritos da plateia voltavam a ficar audíveis.
Dahak apoiou a mão em meu rosto e eu imitei seu movimento.
Ele agora chorava e o homem letal deu lugar novamente aquele garoto amedrontado que chamava meu nome após ter tido um pesadelo.
- Isso ainda não acabou. – ele limpou as lagrimas com a mão que segurava o punho da espada.
- Sim. Isso acabou.
Juntei as forças que ainda me restavam e agarrei o braço onde estava sua espada e o puxei para mim, cravando a lamina em meu peito. O sangue escorria e Dahak tentou pará-lo.
- Não, não, não! – ele repetia sem saber o que fazer.
- Diga a Leah que a amo.
A multidão estava incontrolável.
Juntei as últimas forças que me restavam e falei.
- Você agora é um homem livre.
Meus olhos se fecharam, mas eu ainda podia ouvir, sem forças para mover qualquer musculo sequer.
Dahak gritou, mais alto que qualquer um e me pegou nos braços enquanto chorava.

Desde que fomos separados dediquei minha vida para encontra-lo e por fim liberta-lo.
Por muito tempo nada mais importava.
Eu era feliz ceifando vidas pois eu sabia que poderia salvar a dele e para mim era o bastante para justificar a morte de meus oponentes.
Eu gostava de ser um Gladiador mas esse nunca foi um destino que desejei para meu irmão, talvez se soubesse o que ele havia se tornado tudo teria sido diferente ou talvez não, como saber?
Agora posso ir em paz, mesmo sabendo o que meu irmãozinho passou tenho a certeza de que ele agora está livre.
Livre para tomar suas próprias decisões.
Livre para formar uma família.
Livre para ser feliz.
Livre para ter uma vida.
Tenho a certeza de que nunca mais irão manda-lo para a morte certa, e essa é a única coisa que importa nesse momento.
Dahak e Leah serão livres. Poderão ter uma vida de verdade, uma vida digna de um ser humano e eu não poderia estar mais satisfeito.
Agora posso ir embora sem nenhuma dívida, sem nenhuma promessa não cumprida. Ambos sentirão minha falta, ambos chorarão a perda mas um dia, e espero que esse dia tarde em chegar, nos reencontraremos e eu poderei abraçar novamente meu irmão e poderei tomar novamente Leah em meus braços porque nada, nem mesmo a morte irá apagar o amor que sinto por ela.
Vou embora livre.
Vou embora feliz.


Autora: Jéssyca Alves.
Idade: 19 anos
Localidade: Brasília
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