Conheci Benjamin Constant em 1855; matriculado no 5º ano do
Colégio D. Pedro II, era seu explicando de Aritmética e tinha lições à parte
antes da classe comum de uns cinco a seis estudantes de preparatórios.
Morava ele à rua Formosa, depois general Caldwell, numa das
casinhas últimas do trecho entre as ruas do Areal e Conde e, com a mais
louvável energia, sustentava mãe e irmãs, dando explicações de matemáticas
elementares, enquanto frequentava o curso da Escola Militar no edifício em que
mais tarde passou a funcionar a Politécnica.
Foi sempre – faça-se justiça – excelente filho e exemplar
chefe de família.
Tornei a ser seu explicando nos anos de 1859 e 60 – nesse
último de Álgebra Superior e Geometria Analítica.
Durante muito tempo não o vi mais – interposta a longa
campanha do Paraguai, – mas em 1875 fomos, eu e ele, com outros três oficiais
de engenheiros e estado-maior de 1ª classe, por ocasião da reforma e
transformação da Escola de Aplicação da Praia Vermelha em Escola Militar,
nomeados lentes interinos, quando a lei facultava, a juízo do governo, a
efetividade nas cadeiras que íamos ocupar e reger, – eu a de Mineralogia,
Geologia e Botânica, Benjamin Constant a de Cálculo Diferencial e Integral.
A todos doeu-nos deveras aquela restrição com que não
contávamos e que nos deixava dependentes do concurso e provas públicas – ideia
e opinião sustentadas sempre e sempre pelo Imperador, o qual – força é convir –
pregava a boa doutrina, mantendo um princípio altamente moralizador e
democrático.
De 1875 a 1881 achei-me, pelo caráter das nossas funções,
bastante em contato com Benjamin Constant, que me deu incessantes provas de
muito apreço e simpatia. Já no pesado escaler que, seguindo o costão, nos
levava por água à Escola, já, quando perdíamos aquela condução, a pé, pelo
caminho de Botafogo à Praia Vermelha, naquele tempo simples trilha ao longo da
pedreira, largamente conversávamos e discutíamos, ele, desde mocinho ainda,
adepto fervoroso das doutrinas de Augusto Comte e empenhado nessa propaganda.
– Não siga apertadamente o sistema todo, aconselhava-me: em
não poucos pontos, dele me aparto, nem pratico a religião da Humanidade; mas
estude os livros do Mestre; discipline as suas ideias.
Lembra-me bem que, uma vez, em dia de calor ardente, nós,
mal abrigados por um único chapéu de sol, pareceu-me a caminhada curta ao
ouvi-lo com a sua voz meiga e cantante, desenvolver a tese comtista, que a
morte é um dos principais fatores do progresso humano.
Quando, em janeiro de 1885, perdida por mim a segunda
eleição de Santa Catarina, pedi demissão do posto de major do Exército e do
lugar de lente da Escola Militar, Benjamin Constant, encontrando-se comigo,
mostrou-se em extremo sentido com tal resolução, mas não pôde deixar de reconhecer
que me assistiam boas razões em achar incompatível a profissão das armas com a
carreira política pelos contínuos choques entre elas, que essencialmente lhes
desvirtuam o caráter.
Depois, sempre que nos víamos, apoiava com fogo algumas das
reformas adiantadas por que tanto e tanto pugnei no Parlamento, de 1872 a 1889,
uns dezessete anos seguidos, pondo de lado quaisquer planos de ambição pessoal;
mas condenava outros, particularmente o incremento da imigração europeia e,
sobretudo, o projeto de lei da grande naturalização (o que, entre parênteses,
manifesta bem que o comtismo não tem a feição altruísta que pretende
atribuir-se).
– Você, dizia-me ele com insistência, precisa por força
inspirar-se na física social. A sua orientação será outra, fortalecendo várias
das suas convicções, mas destruindo radicalmente outras.
Leia com toda a atenção o quarto volume da Filosofia
Positiva.
Deu-se, porém, o 15 de Novembro de 1889, e não mais o vi
nem lhe falei senão única vez e em circunstâncias bem especiais.
Em certa noite, tomara eu lugar num carro do plano
inclinado de Santa Teresa, quando nele entrou Benjamin Constant, acompanhado de
pessoa que me era desconhecida. Sentou-se esta ao meu lado, aquele na ponta do
banco.
Ao reconhecer-me, trocou logo de lugar e, sem hesitação,
falou-me com a franqueza da velha camaradagem:
– Já sei, que você está muito zangado comigo.
Mostrei-me reservado e tratei-o de general, que nessa
ocasião já o haviam guindado a esse posto.
– Eu precisava, continuou com certa expansão, fazer o que
fiz, embora já tenha colhido grandes desenganos.
E começou a queixar-se vagamente, mas com amargura.
Conservava-me eu calado.
Quase ao chegarmos abaixo, disse-me, levantando um tanto a
voz:
– Olhe, eu contava com sincero patriotismo e só tenho encontrado
pratiotismo.
E apoiando várias vezes no singular vocábulo, perguntou-me:
– Conhece esta palavra?
Fiz sinal negativo.
– Inventei-a para o meu uso; há simples transposição de um r da segunda sílaba para a primeira.
Pratiotismo é o amor incondicional, acima de tudo, do prato, da barriga, do
interesse, o sentimento que inutiliza, espezinha e conculca o patriotismo.
Havíamos, porém, chegado e rapidamente nos despedimos um do
outro...
Que expansão colossal, avassaladora, não tomou, de 1890
para os nossos tristes dias, esse pratiotismo de que me falou Benjamin Constant!
Foi o fruto mais depressa sazonado da república, que ele
tanto concorrera para fundar.
Visconde de Taunay
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Achados e Perdidos