O capitão Jerônimo Ferreira, morador da antiga vila de São
João Batista de Faro, voltava de uma caçada, a que fora para distrair-se do
profundo pesar causado pela morte da mulher, que o deixara subitamente só com
uma filhinha de dois anos de idade.
Perdida a calma habitual de velho caçador, Jerônimo
Ferreira transviou-se e só conseguiu chegar às vizinhanças da vila, quando já
era noite fechada.
Felizmente a sua habitação era a primeira, ao entrar na
povoação pelo lado de cima, por onde vinha caminhando, e por isso não o
impressionaram muito o silêncio e a solidão que a modo se tornavam mais
profundos, à medida que se aproximava da vila. Ele já estava habituado à
melancolia de Faro, talvez o mais triste e abandonado dos povoados do vale do
Amazonas, posto que se mire nas águas do Nhamundá, o mais belo curso de água de
toda a região. Faro é sempre deserta. A menos que não seja algum dia de festa,
em que a gente das vizinhas fazendas venha ao povoado, quase não se encontra
viva alma nas ruas. Mas se isso acontece à luz do sol, às horas de trabalho e
de passeio, à noite a solidão aumenta. As ruas, quando não sai a lua, são de
uma escuridão pavorosa. Desde as 7 horas da tarde, só se ouve na povoação o pio
agoureiro do murucututu ou o lúgubre uivar de algum cão vagabundo, apostando
queixumes com as águas múrmuras do rio.
Fecham-se todas as portas. Recolhem-se todos, com um terror
vago e incerto que procuram esconjurar, invocando:
– Jesus, Maria, José!
Vinha, pois, caminhando o capitão Jerônimo a solitária estrada,
pensando no bom agasalho da sua fresca rede de algodão trançado e lastimando-se
de não chegar a tempo de encontrar o sorriso encantador da filha, que já
estaria dormindo. Da caçada nada trazia, fora um dia infeliz, nada pudera
encontrar, nem ave nem bicho, e ainda em cima perdera-se e chegava tarde,
faminto e cansado. Também quem lhe mandara sair à caça em sexta-feira? Sim, era
uma sexta-feira, e quando, depois de uma noite de insônia, resolvera-se a tomar
a espingarda e a partir para a caça, não se lembrara que estava em um dia por
todos conhecido como aziago, e especialmente temido em Faro, sobre que pesa o
fado de terríveis malefícios.
Com esses pensamentos, o capitão começou a achar o caminho
muito comprido, por lhe parecer que já havia muito passara o marco da
jurisdição da vila. Levantou os olhos para o céu, a ver se se orientava pelas
estrelas sobre o tempo decorrido. Mas não viu estrelas. Tendo andado muito
tempo por baixo do arvoredo não notara que o tempo se transtornara, e achou-se
de repente em uma dessas terríveis noites do Amazonas, em que o céu parece
ameaçar a terra com todo o furor da sua cólera divina.
Súbito o clarão vivo de um relâmpago, rasgando o céu,
mostrou o caçador, que se achava a pequena distância da vila, cujas casas,
caiadas de branco, lhe apareceram numa visão efêmera. Mas pareceu-lhe que
errara de novo o caminho, pois não vira a sua casinha abençoada, que devia ser
a primeira a avistar. Com poucos passos mais achou-se em uma rua, mas não era a
sua. Parou e pôs o ouvido à escuta, abrindo também os olhos para não perder a
orientação de um novo relâmpago.
Nenhuma voz humana se fazia ouvir em toda a vila; nenhuma
luz se via; nada que indicasse a existência de um ser vivente em toda a
redondeza. Faro parecia morta.
Trovões furibundos começaram a atroar os ares. Relâmpagos
amiudavam-se, inundando de luz rápida e viva as maltas e os grupos de
habitações, que logo depois ficavam mais sombrios.
Raios caíram com fragor enorme, prostrando cedros grandes,
velhos de cem anos. O capitão Jerônimo não podia mais dar um passo, nem já
sabia onde estava. Mas tudo isso não era nada. Do fundo do rio, das profundezas
da lagoa formada pelo Nhamundá levantava-se um ruído que foi crescendo,
crescendo e se tornou um clamor horrível, insano, uma voz sem nome que dominava
todos os ruídos da tempestade. Era um clamor só comparável ao brado imenso que
hão de soltar os condenados no dia do Juízo Final.
Os cabelos do capitão Ferreira puseram-se de pé e duros
como estacas. Ele bem sabia o que aquilo era. Aquela voz era a voz da cobra
grande, da colossal sucuriju, que reside no fundo dos rios e dos lagos. Eram os
lamentos do monstro em laborioso parto.
O capitão levou a mão à testa para benzer-se, mas os dedos
trêmulos de medo não conseguiram fazer o sinal-da-cruz. Invocando o santo do
seu nome, Jerônimo Ferreira deitou a correr na direção em que supunha dever
estar a sua desejada casa. Mas a voz, a terrível voz, aumentava de volume.
Cresceu mais, cresceu tanto afinal, que os ouvidos do capitão zumbiram, tremeram-lhe
as pernas e caiu no limiar de uma porta.
Com a queda espantou um grande pássaro escuro que ali
parecia pousado, e que voou cantando:
– Acauã, acauã!
Muito tempo esteve o capitão caído sem sentidos. Quando
tornou a si, a noite estava ainda escura, mas a tempestade cessara. Um silêncio
tumular reinava. Jerônimo, procurando orientar-se, olhou para a lagoa e viu que
a superfície das águas tinha um brilho estranho, como se a tivessem untado de
fósforo. Deixou errar o olhar sobre a toalha do rio, e um objeto estranho,
afetando a forma de uma canoa, chamou-lhe a atenção. O objeto vinha impelido
por uma força desconhecida em direção à praia, para o lado em que se achava
Jerônimo. Este, tomado de uma curiosidade invencível, adiantou-se, meteu os pés
na água e puxou para si o estranho objeto. Era com efeito uma pequena canoa, e
no fundo dela estava uma criança que parecia dormir. O capitão tomou-a nos
braços. Nesse momento, rompeu o sol por entre os aningais de uma ilha vizinha,
cantaram os galos da vila, ladraram os cães, correu rápido o rio, perdendo o
brilho desusado. Abriram-se algumas portas. À luz da manhã o capitão Jerônimo
Ferreira reconheceu que caíra desmaiado justamente no limiar da sua casa.
No dia seguinte, toda a vila de Faro dizia que o capitão
adotara uma linda criança, achada à beira do rio, e que se dispunha a criá-la,
como própria, conjuntamente com a sua legítima Aninha.
Tratada efetivamente como filha da casa, cresceu a estranha
criança, que foi batizada com o nome de Vitória.
Educada da mesma forma que Aninha, participava da mesa, dos
carinhos e afagos do capitão, esquecido do modo por que a recebera.
Eram ambas moças bonitas aos catorze anos, mas tinham tipo
diferente.
Ana fora uma criança robusta e sã, era agora franzina e
pálida. Os anelados cabelos castanhos caíam-lhe sobre as alvas e magras
espáduas. Os olhos tinham uma languidez doentia. A boca andava sempre
contraída, em uma constante vontade de chorar. Raras rugas divisavam-se-lhe nos
cantos da boca e na fronte baixa, algum tanto cavada. Sem que nunca a tivessem
visto verter uma lágrima, Aninha tinha um ar tristonho, que a todos
impressionava, e se ia tornando cada dia mais visível.
Na vila, dizia toda a gente:
– Como está magra e abatida a Aninha Ferreira, que prometia
ser robusta e alegre!
Vitória era alta e magra, de compleição forte, com músculos
de aço. A tez era morena, quase escura, as sobrancelhas negras e arqueadas; o
queixo, fino e pontudo; as narinas dilatadas; os olhos negros, rasgados, de um
brilho estranho. Apesar da incontestável formosura, tinha alguma coisa de
masculino nas feições e nos modos. A boca, ornada de magníficos dentes, tinha
um sorriso de gelo. Fitava com arrogância os homens até obrigá-los a baixar os
olhos.
As duas companheiras afetavam a maior intimidade e ternura
recíproca, mas o observador atento notaria que Aninha evitava a companhia da
outra, ao passo que esta a não deixava. A filha do Jerônimo era meiga para com
a companheira, mas havia nessa meiguice um certo acanhamento, uma espécie de
sofrimento, uma repulsão, alguma coisa como um terror vago, quando a outra lhe
cravava nos olhos dúbios e amortecidos os seus grandes olhos negros.
Nas relações de todos os dias, a voz da filha da casa era
mal segura e trêmula; a de Vitória, áspera e dura. Aninha, ao pé de Vitória
parecia uma escrava junto da senhora.
Tudo, porém, correu sem novidade, até o dia em que
completaram quinze anos, pois se dizia que eram da mesma idade. Desse dia em
diante, Jerônimo Ferreira começou a notar que a sua filha adotiva ausentava-se
da casa frequentemente, em horas impróprias e suspeitas, sem nunca querer dizer
por onde andava. Ao mesmo tempo que isso sucedia, Aninha ficava mais fraca e
abatida. Não falava, não sorria, dois círculos arroxeados salientavam-lhe a
morbidez dos grandes olhos pardos. Uma espécie de cansaço geral dos órgãos
parecia que lhe ia tirando pouco a pouco a energia da vida.
Quando o pai chegava-se a ela e lhe perguntava
carinhosamente: “Que tens, Aninha?”, a menina, olhando assustada para os
cantos, respondia em voz cortada de soluços: “Nada, papai”.
A outra, quando Jerônimo a repreendia pelas inexplicáveis
ausências, dizia com altivez e pronunciado desdém: “E que tem vosmecê com
isso?”
***
Em julho desse mesmo ano o filho de um fazendeiro do Salé,
que viera passar o São João em Faro, namorou-se da filha de Jerônimo e pediu-a
em casamento. O rapaz era bem-apessoado, tinha alguma coisa de seu, e gozava de
reputação de sério. Pai e filha anuíram gostosamente ao pedido e trataram dos
preparativos do noivado. Um vago sorriso iluminava as feições delicadas de
Aninha. Mas um dia que o capitão Jerônimo fumava tranquilamente o seu cigarro
de tauari à porta da rua, olhando para as águas serenas do Nhamundá, a Aninha
veio se aproximando dele, a passos trôpegos, hesitante e trêmula, e, como se
cedesse a uma ordem irresistível, disse, balbuciando, que não queria mais
casar.
– Por quê? – foi a palavra que veio naturalmente aos lábios
do pai, tomado de surpresa.
Por nada, porque não queria. E juntando as mãos, a pobre
menina pediu com tal expressão de sentimento, que o pai, enleado, confuso,
dolorosamente agitado por um pressentimento negro, aquiesceu, vivamente
contrariado.
– Pois não falemos mais nisso.
Em Faro não se falou em
outra coisa durante muito tempo, senão na inconstância da Aninha Ferreira.
Somente Vitória nada dizia. O fazendeiro do Salé voltou para as suas terras,
prometendo vingar-se da desfeita que lhe haviam feito.
E a desconhecida moléstia da Aninha se agravava, a ponto de
impressionar seriamente o capitão Jerônimo e toda a gente da vila.
“Aquilo é paixão recalcada”, diziam alguns. Mas a opinião
mais aceita era que a filha do Ferreira estava enfeitiçada.
No ano seguinte, o coletor apresentou-se pretendente à
filha do abastado Jerônimo Ferreira.
– Olhe, seu Ribeirinho – disse-lhe o capitão –, é se ela
muito bem quiser, porque não a quero obrigar. Mas eu já lhe dou uma resposta
nesta meia hora.
Foi ter com a filha e achou-a nas melhores disposições para
o casamento. Mandou chamar o coletor, que se retirara discretamente, e
disse-lhe muito contente:
– Toque lá, seu Ribeirinho, é negócio arranjado.
Mas daí alguns dias, Aninha foi dizer ao pai que não queria
casar com o Ribeirinho.
O pai deu um pulo da rede em que se deitara havia minutos
para dormir a sesta.
– Temos tolice?
E como a moça dissesse que nada era, nada tinha, mas não
queria casar, terminou em voz de quem manda:
– Pois agora há de casar que o quero eu.
Aninha foi para o seu quarto e lá ficou encerrada até o dia
do casamento, sem que nem pedidos nem ameaças a obrigassem a sair.
Entretanto, a agitação de Vitória era extrema.
Entrava a todo momento no quarto da companheira e saída
logo depois com as feições contraídas pela ira.
Ausentava-se da casa durante muitas horas, metia-se pelos
matos, dando gargalhadas que assustavam os passarinhos. Já não dirigia a
palavra a seu protetor nem a pessoa alguma da casa.
***
Chegou porém o dia da celebração do casamento. Os noivos,
acompanhados pelo capitão, pelos padrinhos e por quase toda a população da
vila, dirigiram-se para a matriz. Notava-se com espanto a ausência da irmã
adotiva da noiva. Desaparecera, e por maiores que fossem os esforços tentados
para a encontrar, não lhe puderam descobrir o paradeiro. Toda a gente indagava,
surpresa:
— Onde estará Vitória? Como não vem assistir ao
casamento da Aninha?
O capitão franzia o sobrolho, mas a filha parecia aliviada
e contente.
Afinal, como ia ficando tarde, o cortejo penetrou na
matriz, e deu-se começo à cerimônia.
Mas eis que, na ocasião em que o vigário lhe perguntava se
casava por seu gosto, a noiva põe-se a tremer como varas verdes, com o olhar
fixo na porta lateral da sacristia.
O pai, ansioso, acompanhou a direção daquele olhar e ficou
com o coração do tamanho de um grão de milho.
De pé, à porta da sacristia, hirta como uma defunta, com
uma cabeleira feita de cobras, com as narinas dilatadas e a tez verde-negra,
Vitória, a sua filha adotiva, fixava em Aninha um olhar horrível, olhar de
demônio, olhar frio que parecia querer pregá-la imóvel no chão. A boca
entreaberta mostrava a língua fina, bipartida como língua de serpente. Um leve
fumo azulado saía-lhe da boca e ia subindo até o teto da igreja. Era um
espetáculo sem nome!
Aninha soltou um grito de agonia e caiu com estrondo sobre
os degraus do altar. Uma confusão fez-se entre os assistentes. Todos queriam
acudir-lhe, mas não sabiam o que fazer. Só o capitão Jerônimo, em cuja memória
aparecia de súbito a lembrança da noite em que encontrara a estranha criança,
não podia despegar os olhos da pessoa de Vitória, até que esta, dando um
horrível brado, desapareceu, sem se saber como.
Voltou-se então para a filha, e uma comoção profunda
abalou-lhe o coração. A pobre noiva, toda vestida de branco, deitada sobre os
degraus do altar-mor, estava hirta e pálida. Dois grandes fios de lágrimas,
como contas de um colar desfeito, corriam-lhe pela face. E ela nunca chorara,
nunca desde que nascera se lhe vira uma lágrima nos olhos!
– Lágrimas! – exclamou o capitão, ajoelhando aos pés
da filha.
– Lágrimas! – clamou a multidão, tomada de espanto.
Então convulsões terríveis se apoderaram do corpo de
Aninha. Retorcia-se como se fora de borracha. O seio agitava-se dolorosamente.
Os dentes rangiam em fúria. Arrancava com as mãos os lindos cabelos. Os pés
batiam no soalho. Os olhos reviravam-se nas órbitas, escondendo a pupila. Toda
ela se maltratava, rolando como uma frenética, uivando dolorosamente.
Todos os que assistiam a essa cena estavam comovidos. O
pai, debruçado sobre o corpo da filha, chorava como uma criança.
De repente a moça pareceu sossegar um pouco, mas não foi
senão o princípio de uma nova crise. Inteiriçou-se. Ficou imóvel. Encolheu
depois os braços, dobrou-os a modo de asas de pássaro, bateu-os por vezes nas
ilhargas, e entreabrindo a boca, deixou sair um longo grito que nada tinha de
humano, um grito que ecoou lugubremente pela igreja:
– Acauã!
– Jesus! – bradaram todos, caindo de joelhos.
E a moça, cerrando os olhos, como em êxtase, com o corpo
imóvel, à exceção dos braços, continuou aquele canto lúgubre:
– Acauã! Acauã!
Por cima do telhado uma voz respondeu à de Aninha:
– Acauã! Acauã!
Um silêncio tumular reinou entre os assistentes. Todos
compreendiam a horrível desgraça.
Era o Acauã!
Inglês de Sousa
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Achados e Perdidos