A Delgado de Carvalho Júnior
No
dia 6 de outubro de 1891, quando o senhor Vieira, às sete horas da manhã, pôs o
chapéu para sair, Dona Catarina, sua esposa, disse, consertando-lhe o laço da
gravata:
—
Sabes de uma coisa? Mana Adelaide mandou convidar-me para ir hoje com ela ao
Teatro Lírico.
—
Que ideia!
—
Aí vens tu! Vai-se embora a companhia e eu não assisto a um único espetáculo,
podendo ouvir a Dona Branca de graça!
—
Mas, filha, não te lembras que dia é hoje?
—
É terça-feira.
—
E então?
—
E então?
—
Pois não sabe que às terças-feiras não dispenso o meu voltaretezinho em casa do
compadre?
—
Quem te diz que não vás ao teu voltaretezinho? Mana Adelaide conhece os teus
hábitos e as tuas impertinências; foi a mim e não a ti que convidou.
—
Mas...
—
Olha, eu vou jantar com ela nas Laranjeiras e de lá vamos juntas para o teatro;
acabado o espetáculo, ela traz-me no seu carro, e deixa-me ficar em casa. Não
gastas um vintém, nem te incomodas.
—
Bem sei, mas não é bonito uma senhora casada ir ao teatro sem seu marido.
—
Mas com sua irmã... e com o marido de sua irmã...
—
Bom, bom, vai; não quero que me chamem desmancha-prazeres. Jantarei sozinho.
O
senhor Vieira saiu, foi tratar da vida, e quando, às quatro horas, voltou à
casa, já Dona Catarina tinha ido ter com a irmã.
O
pobre homem ficou muito aborrecido naquela solidão. Toda sua família era essa
bela senhora com quem se casara em 1885 e contava dez anos menos que ele.
Tinha
quarenta e quatro invernos o senhor Vieira, e inteligência bastante para
perceber que Dona Catarina o não amava; entretanto, contentava-se da respeitosa
amizade com que ela se impunha serenamente à sua estima, e preferia mesmo esse
discreto sentimento ao amor desordenado e doentio, que produz ciúmes e
dispepsias, maus humores e lesões cardíacas. Depositava uma confiança cega em
sua mulher e estimava-a deveras. Sentia-se feliz.
Mais
feliz seria, entretanto, se houvesse uma criança naquela casa. Dona Catarina
sofria por vezes longos acessos de melancolia; algumas noites deixava o esposo
sozinho na larga cama de casados, e ia revolver-se num sofá, suspirando,
irrequieta, nervosa, sem poder dormir. Mas esses fenômenos eram passageiros, e
o marido, atribuía-os às ausência da prole.
—
Decididamente, falta uma criança nesta casa!
Depois
daquele jantar de solteirão, o senhor Vieira dormiu a sesta, e às sete horas
foi para casa do compadre, em São Cristóvão. O senhor Vieira morava no Catete.
—
Bravos! cá está o nosso homem! exclamou o compadre e exclamaram mais dois
amigos da vizinhança, que se achavam à espera do parceiro. Vamos ao vício!
Os
quatro companheiros sentaram-se às oito horas e jogaram até perto da meia-noite. O senhor Vieira ganhou dezenove mil e quinhentos. Nunca estivera com
tanta sorte.
À
meia noite, depois do chá com torradas, o nosso homem saiu, e foi esperar a
condução na esquina. Passados uns vinte minutos, apareceu um bonde, mas em
sentido contrário, e parou para fazer saltar o Lamenha, que era vizinho
paredes-meias do compadre.
—
Olá! a estas horas, seu Lamenha? perguntou o senhor Vieira. Já sei que vem do
Lírico; foi ouvir a Dona Branca.
—
Ora deixe-me com a Dona Branca! Se soubesse...
—
Então a ópera não presta?
—
Não sei; o espetáculo não passou do começo!
—
Ora essa! Por quê?
—
No fim do primeiro ato o público das torrinhas chamou à cena o empresário para
ferrar-lhe uma pateada, não sei porque motivo. O empresário não quis vir. O
público zangou-se. A polícia interveio, e agora é que são elas! Ah, seu Vieira,
que rolo!...
—
Deveras? perguntou o outro empalidecendo.
—
Os soldados da polícia acutilavam a torto e a direito, os bancos voavam, os
globos dos candeeiros partiam-se, as famílias separavam-se numa confusão
medonha, as senhoras tinham chiliques e soltavam gritos...
—
As senhoras?... Meu Deus!... e a minha!...
— Há muita gente ferida, e não será
para admirar que houvesse mortes! Eu escapei por milagre!
— E minha mulher que foi a
este espetáculo!...
— Sua senhora? Não a vi. Só vi sua cunhada, a Dona
Adelaide, sozinha, correndo e gritando que parecia uma louca!
— Pois estavam juntas!... Felizmente aí vem o bonde... Quem
sabe se não vou encontrá-la morta? Eu bem que queria que não fosse à tal Dona
Branca! Ora esta!...
E o senhor Vieira tomou o bonde, sem mesmo se despedir de
Lamenha.
Imaginem o desassossego com que o pobre diabo fez a viagem
de São Cristóvão ao largo de São Francisco. Aí tomou um tílburi. O cocheiro
confirmou a informação do Lamenha, acrescentando que tinham morrido duas
senhoras, sendo uma de susto.
Ao passar pela Guarda Velha, o senhor Vieira notou que o
Lírico estava imerso nas trevas e no silêncio. Chegou à casa, e expectorou um
grande suspiro de alívio ao entrar na alcova: Dona Catarina dormia
tranquilamente, envolvida no seu lençol.
O marido despiu-se em silêncio e deitou-se ao lado da
senhora.
Ela despertou:
— Ah! és tu?
Ele, completamente serenado, resolveu gracejar e
perguntou-lhe sorrindo:
— Então, minha senhora, que me diz de Dona Branca?
— É uma ópera muito bonita.
— Hein?
— O último ato principalmente, acrescentou dona Catarina
com muita convicção.
O senhor Vieira sentiu o sangue lhe subir à cabeça, mas
conseguiu dissimular, e perguntou se a ópera tinha sido bem cantada.
— Perfeitamente cantada, respondeu ela, mentindo como só as
mulheres sabem mentir.
— E não houve novidade durante o espetáculo?
— Nenhuma. O Gabrielesco esteve sublime!
— O Gabrielesco? No último ato?
— Em todos os atos. É um tenorão!
— Está bem.
O senhor Vieira apagou a vela e fingiu que se aninhava para
dormir.
— Aí está você amuado! Eu por seu gosto não saía de casa,
não me divertia, vivia metida entre quatro paredes! Que homem!...
Ele resmungou uns sons inarticulados; não respondeu.
— Será possível que o Lamenha me enganasse? pensava o
marido. Não; — e o cocheiro do tílburi?...
O senhor Vieira passou, talvez pela primeira vez em sua
vida, uma noite completamente em claro. Ergueu-se logo ao amanhecer, saiu,
convenceu-se de uma verdade terrível, e nesse mesmo dia separou-se para sempre
de Dona Catarina.
Na terça-feira seguinte, o senhor Vieira não faltou ao
voltaretezinho do compadre.
Quando este lhe perguntou: — Então?... que foi isso?... a
comadre? — ele respondeu melancolicamente:
— A comadre ouvia-me dizer que em nossa casa faltava uma
criança e quis arranjá-la fora... Deixa lá! — Vamos ao vício!
Nessa noite perdeu quinze mil e oitocentos.
Artur Azevedo
Categorias:
Achados e Perdidos