Em Caguaçu os revolucionários. Em
São Tiago os legalistas. Entre os dois indiferente o rio Jacaré. O delegado
regional de Boniteza mandara recolher as barcas e as margens só podiam mesmo estreitar
relações no infinito. De dia não acontecia nada. Os inimigos caçavam jararacas
esperando ataques que não vinham. Por isso esperavam sossegados. Inutilmente os
urubus no voo lindo deles se cansavam indo e vindo de bico esfomeado. Os
guerreiros gozavam de perfeita saúde.
De noite tinha o silêncio. Qualquer
barulho assustava. Os soldados de guarda se preparavam para morrer no seu posto
de honra. Mas era estalo de árvores. Ou correria de bicho. A madrugada se
levantava sem novidades. Por isso a luta entre irmãos decorria verdadeiramente
fraternal.
Porém uma manhã chegou a Boniteza a
notícia de que do lado de Caguaçu qualquer coisa de muito grave se preparava.
Tropas marchavam na direção do rio trazendo canhões, carros de combate, grande
provisão de gases asfixiantes comprada na Argentina, aeroplanos, bombas de
dinamite, granadas de mão e dinheiro, todos esses elementos de vitória. Um
engenheiro russo construiria em dois tempos uma ponte sobre o Jacaré e o resto
seria uma corrida fácil até a capital do país. Desta vez a cousa iria mesmo.
Boniteza se surpreendeu mas não se
acovardou. Com rapidez e entusiasmo começou a preparar tudo para a defesa. Ao
longo do rio se abriu uma trincheira inexpugnável. Caminhões descarregaram
tropas em todos os pontos. As metralhadoras foram ajustadas, os fuzis
engraxados, os caixotes de munições abertos. Costureiras solícitas pregaram
botões nas fardas das praças mais relaxadas. Nas barbearias os vidros de loção
estrangeira se esvaziaram na cabeça dos sargentos. Era de guerra o ar que se
respirava.
A noite encontrou os combatentes a
postos. Na trincheira eles velavam apoiados nos fuzis. Sentinelas foram
destacadas para vigiar a margem inimiga. Entre elas o sorteado Leônidas
Cacundeiro.
*
Era infeliz porque sofria de dor de
dentes crônica, piscava sem parar e gaguejava. Foi para o seu posto de
observação, deitou-se de barriga num cobertor velho. Só o busto meio erguido,
ficou olhando na frente dele de fuzil na mão. Tinha ordens severas: vulto que
aparecesse era mandar tiro nele. Sem discutir.
Leônidas Cacundeiro deu de pensar.
Pensava uma cousa, o ventinho frio jogava o pensamento fora, pensava outra.
Tudo quieto. Ainda bem que havia luar. Do alto da ribanceira ele examinava as
águas do Jacaré. Ou então erguia o olhar e descobria nas nuvens a cabeleira de
um maestro, um cachorro sem rabo, duas velhinhas, pessoas conhecidas.
Agora o frio era o frio da
madrugada. O Doutor Adelino costumava dizer: “Quando vocês sentirem frio,
pensem no Pólo Norte e sentirão logo calor.” Pensou no Pólo Norte. Lembranças
vagas de uma fita vista há muito tempo. Gelo e gelo e mais gelo. No meio do
gelo um naviozinho encalhado. Homens barbudos, jogando fumaça pela boca,
encapotados e enluvados, com cachorros felpudos. Duas barracas à esquerda. E aquela
branquidão. Forçou bem o olhar. Um urso pardo com duas bandeirinhas. Um urso em
pé com uma bandeirinha na pata direita, outra bandeirinha na pata esquerda.
Nenhuma arma.
Deu um berro:
-Alto!
Ficou em posição de tiro. O soldado
não podia mesmo dar um passo à frente senão caía no rio. Começou a mexer com os
braços. Levantava uma bandeirinha, abaixava outra, levantava as duas.
*
Leônidas pensou: - Que negócio será
aquele?
Foi chamar o sargento. O sargento
veio, olhou muito, disse:
-Que negócio será aquele? Vá chamar o
tenente!
Leônidas foi chamar o tenente, veio
correndo com ele. O tenente limpou os óculos com o lenço de seda, verificou se
o revólver estava armado, olhou muito, falou coçando a nuca:
-Que negócio será aquele? Vá chamar o
major!
Leônidas partiu em busca do major.
No acampamento não estava. Foi até Boniteza. Encontrou um cabo. O cabo mandou
Leônidas bater na casa da viúva Dona Birigui ao lado do Correio. O major
apareceu na janela com má vontade. Resmungou:
-Já vou. Leônidas comboiou o major até o
rio, o major teve uma conferência com o tenente, subiu num pé de pitanga, falou
lá de cima:
-Que negócio será aquele? Vá chamar o
comandante!
O anspeçada primeiro não queria acordar
o comandante. Eram ordens. Leônidas insistiu firme e o comandante teve de pular
da cama. Leônidas fazendo continência explicou o caso. O coronel disse:
- Às seis estou lá.
*
Eram cinco, Leônidas voltou com o
recado. O major, o tenente, o sargento estavam nervosos. De vez em quando um
deles chegava mais perto da margem e o soldado do outro lado recomeçava a
ginástica: bandeirinha na frente, bandeirinha atrás, bandeirinha apontando o
céu, bandeirinha apontando o chão. Ia repetindo com uma paciência desgraçada.
Então já havia passarinhos cantando,
barulho de vida em Boniteza, só a cara amarrotada dos insones não resplendia na
luz da manhãzinha. Toques de corneta chegavam de longe despedaçados. Na banda
de lá do Jacaré o homem da banderinha habitava sozinho a paisagem com uma
vontade louca de tomar café bem quente e bem forte. Era a hora da raiva e todos
se espreguiçavam com o sol que chegava.
O Coronel Jurupari ouviu calado a
narração do estranho caso. Fez em seguida duas ou três perguntas hábeis com o
intuito de esclarecê-lo tanto quanto possível. Chamou de lado o major e o
tenente, os três discutiram muito, emitiram suas opiniões sobre assuntos de
estratégia e balística que pareciam oportunos naquela emergência, fumaram
vários cigarros. Afinal o coronel entre o major e o tenente avançou até a
margem de binóculo em punho. Assim que ele assentou o binóculo, da outra banda
do Jacaré recomeçou a dança das bandeirinhas. O coronel olhando. A sua primeira
observação foi:
-É um cabo e não tem má cara. Depois de
uns minutos veio a segunda:
-Hoje é dor de cabeça na certa com este
noroeste. A terceira alimentou ainda mais a já angustiosa incerteza dos
presentes:
-Mas que negócio será aquele? Daí a uns
instantes repetiu:
-Mas que diabo de negócio será mesmo
aquele? Porém acrescentou numa ordem para o Leônidas:
-Vá chamar o sinaleiro!
O sinaleiro veio chupando o nariz.
Olhou, deu uma risadinha, tirou um papel e um lápis do bolso traseiro da calça,
ajoelhou-se com uma perna só, pôs o papel na coxa da outra, passou a ponta do
lápis na língua, começou a tomar nota. Dava uma espiada, as bandeirinhas se
mexiam, escrevia. O Coronel Jurupari, o major, o tenente, o sargento e o
sorteado Leônidas Cacundeiro esperavam o resultado de armas na mão e ansiedade
nos olhos.
O sinaleiro se levantou, ficou em
posição de sentido e com voz pausada e firme leu a mensagem enviada pelos
revolucionários de Caguaçu: Saúde e Fraternidade.
O coronel mandou responder
agradecendo e retribuindo. Ex-corde.
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Achados e Perdidos