I
Foi assim:
Num tempo muito antigo, muito, houve uma noite tão comprida
que pareceu que nunca mais haveria luz do dia.
Noite escura como breu, sem lume no céu, sem vento, sem
serenada e sem rumores, sem cheiro dos pastos maduros nem das flores da mataria.
Os homens viveram abichornados, na tristeza dura; e porque
churrasco não havia, não mais sopravam labaredas nos fogões e passavam comendo
canjica insossa; os borralhos estavam se apagando e era preciso poupar os
tições...
Os olhos andavam tão enfarados da noite, que ficavam
parados, horas e horas, olhando, sem ver as brasas vermelhas do nhanduvai... as
brasas somente, porque as faíscas, que alegram, não saltavam, por falta do
sopro forte de bocas contentes.
Naquela escuridão fechada nenhum tapejara seria capaz de
cruzar pelos trilhos do campo, nenhum flete crioulo teria faro nem ouvido nem
vista para bater na querência; até nem sorro daria no seu próprio rastro!
E a noite velha ia andando... ia andando...
II
Minto:
No meio do escuro e do silêncio morto, de vez em quando,
ora duma banda ora doutra, de vez em quando uma cantiga forte, de bicho
vivente, furava o ar; era o téu-téu ativo, que não dormia desde o entrar do
último sol e que vigiava sempre, esperando a volta do sol novo, que devia vir e
que tardava tanto já…
Só o téu-téu de vez em quando cantava; o seu — quero-quero!
— tão claro, vindo de lá do fundo da escuridão, ia aguentando a esperança dos
homens, amontoados no redor avermelhado das brasas.
Fora disto, tudo o mais era silêncio; e de movimento,
então, nem nada.
III
Minto:
Na última tarde em que houve sol, quando o sol ia
descambando para o outro lado das coxilhas, rumo do minuano, e de onde sobe a
estrela-d’alva, nessa última tarde também desabou uma chuvarada tremenda; foi
uma manga d’água que levou um tempão a cair, e durou… e durou...
Os campos foram inundados; as lagoas subiram e se largaram
em fitas coleando pelos tacuruzais e banhados, que se juntaram, todos, num; os
passos cresceram e todo aquele peso d’água correu para as sangas e das sangas
para os arroios, que ficaram bufando, campo fora, campo fora, afogando as
canhadas, batendo no lombo das coxilhas. E nessas coroas e que ficou sendo o
paradouro da animalada, tudo misturado, no assombro. E era terneiros e pumas,
tourada e potrilhos, perdizes e guaraxains, tudo amigo, de puro medo. E
então!...
Nas copas dos butiás vinham encostar-se bolos de formigas;
as cobras se enroscavam na enrediça dos aguapés; e nas estivas do santa-fé e
das tiriricas, boiavam os ratões e outros miúdos.
E, como a água encheu todas as tocas, entrou também na da
cobra-grande, a — boiguaçu — que, havia já muitas mãos de luas, dormia
quieta, entanguida. Ela então acordou-se e saiu, rabeando.
Começou depois a mortandade dos bichos e a boiguaçu pegou a
comer as carniças. Mas só comia os olhos e nada, nada mais.
A água foi baixando, a carniça foi cada vez engrossando, e
a cada hora mais olhos a cobra-grande comia.
IV
Cada bicho guarda no corpo o sumo do que comeu.
A tambeira que só come trevo maduro dá no leite o cheiro do
milho verde; o cerdo que come carne de bagual nem alqueires de mandioca o
limpam bem; e o socó tristonho o biguá matreiro até no sangue têm cheiro de
pescado. Assim também, nos homens, que até sem comer nada, dão nos olhos a cor
de seus arrancos. O homem de olhos limpos guapo e mão-aberta; cuidado com os
vermelhos; mais cuidados -com os amarelos; e, toma tendência doble com os
raiados e baços!…
Assim foi também, mas doutro jeito, com a boiguaçu, que
tantos olhos comeu.
V
Todos — tantos, tantos! que a cobra-grande comeu —, lavam,
entranhado e luzindo, um rastilho da última luz eles viram do último sol, antes
da noite grande que caiu...
E os olhos — tantos, tantos! — com um pingo de luz cada um,
foram sendo devorados; no principio um punhado, ao depois uma porção, depois um
bocadão, depois, como uma braçada…
VI
E vai, como a boiguaçu não tinha pêlos como o boi, nem
escamas o dourado, nem penas como o avestruz, nem casca como o tatu, nem couro
grosso como a anta, vai, o seu corpo foi ficando transparente, transparente,
clareado pelos miles de luzezinhas, dos tantos olhos que foram esmagados dentro
dele, deixando cada qual sua pequena réstia de luz. E vai, afinal, a boiguaçu
toda já era uma luzerna, um clarão sem chamas, já era um fogaréu azulado, de
luz amarela e triste e fria, saída dos olhos, que fora guardada neles, quando
ainda estavam vivos…
VII
Foi assim e foi por isso que os homens, quando pela vez
primeira viram a boiguaçu tão demudada, não a conheceram mais. Não conheceram e
julgando que era outra, muito outra, chamam-na desde então, de boitatá, cobra
de fogo, boitatá, a boitatá!
E muitas vezes a boitatá rondou as rancherias, faminta,
sempre que nem chimarrão. Era então que o téu-téu cantava, como bombeiro.
E os homens, por curiosos, olhavam pasmados, para aquele
grande corpo de serpente, transparente — tatá, de fogo — que media mais braças
que três laços de conta e ia alumiando baçamente as carquejas... E depois,
choravam. Choravam, desatinados do perigo, pois as suas lágrimas também
guardavam tanta ou mais luz que só os olhos, e a boitatá ainda cobiçava os
olhos vivos dos homens, que já os das carniças a enfaravam...
VIII
Mas, como dizia: na escuridão só avultava o clarão baço do
corpo da boitatá, e era por ela que o téu-téu cantava de vigia, em todos os
flancos da noite.
Passado um tempo, a boitatá morreu; de pura fraqueza
morreu, porque os olhos comidos encheram-lhe o corpo mas não lhe deram
sustância, pois que sustância não tem a luz que os olhos em si entranhada
tiveram quando vivos…
Depois de rebolar-se rabiosa nos montes de carniça, sobre
os couros pelados, sobre as carnes desfeitas, sobre as cabelamas soltas, sobre
as ossamentas desparramadas, o corpo dela desmanchou-se, também como cousa da
terra, que se estraga de vez.
E foi então, que a luz que estava presa se desatou por aí.
E até pareceu cousa mandada: o sol apareceu de novo!
IX
Minto:
Apareceu sim, mas não veio de supetão. Primeiro foi-se
adelgaçando o negrume, foram despontando as estrelas; e estas se foram sumindo
no cobreado do céu; depois foi sendo mais claro, mais claro, e logo, na
lonjura, começou a subir uma lista de luz… depois a metade de uma cambota de
fogo… e já foi o sol que subiu, subiu, subiu, até vir a pino e descambar, como
dantes, e desta feita, para igualar o dia e a noite, em metades, para sempre.
X
Tudo o que morre no mundo se junta à semente de onde
nasceu, para nascer de novo: só a luz da boitatá ficou sozinha, nunca mais se
juntou com a outra luz de que saiu.
Anda sempre arisca e só, nos lugares onde quanta mais
carniça houve, mais se infesta. E no inverno, de entanguida, não aparece e
dorme, talvez entocada.
Mas de verão, depois da quentura dos mormaços, começa então
o seu fadário.
A boitatá, toda enroscada, como uma bola — tatá, de fogo! —
empeça a correr o campo, coxilha abaixo, lomba acima, até que horas da noite!...
É um fogo amarelo azulado, que não queima a macega seca nem
aquenta a água dos manantiais; e rola, gira, corre, corcoveia e se despenca e
arrebenta-se, apagando... e quando um menos espera, aparece, outra vez, do
mesmo jeito!
Maldito! Tesconjuro!
XI
Quem encontra a boitatá pode até ficar cego... Quando
alguém topa com ela só tem dois meios de se livrar: ou ficar parado, muito
quieto, de olhos fechados apertados e sem respirar, até ir-se ela embora, ou,
se anda a cavalo, desenrodilhar o laço, fazer uma armada grande e
atirar-lha em cima, e tocar a galope, trazendo o laço de arrasto,
todo solto, até a ilhapa!
A boitatá vem acompanhando o ferro da argola... mas de
repente, batendo numa macega, toda se desmancha, e vai esfarinhando a luz,
para emulitar-se de novo, com vagar, na aragem que ajuda.
XII
Campeiro precatado! reponte o seu gado da querência da
boitatá: o pastiçal, aí, faz peste...
Tenho visto!
Simões Lopes Neto
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Achados e Perdidos