Olá, queridos leitores.
É hoje. Hoje estreia nas telonas de todos os cinemas dos Brasil o tão esperado "O Hobbit: A batalha dos cinco exércitos", terceira e última parte da trilogia cinematográfica de Peter Jackson baseada no livro do escritor inglês J.R.R. Tolkien.
Como todos sabem, essa trinca de filmes que narram a participação de Bilbo Bolseiro na luta dos anões contra o poderoso Smaug, também descrevem o momento em que o pequeno hobbit do título encontra o Um Anel, o poderoso e maligno objeto que desencadeia os eventos da trilogia "O Senhor dos Anéis".
Mas muitos expectadores, cinefilos e mesmo leitores não conhecem a origem das histórias da Terra Média, nem a mente que a criou. Também não sabem que este criativo homem foi responsável por inventar todo um gênero literário, um gênero que fez tanto sucesso que hoje, passados 77 anos do lançamento de "O Hobbit", continua influenciando todas as mídias e as formas de se contar histórias.
Ficou curioso? Então desfrute essa transcrição da matéria publicada pela revista Super Interessante.
***
À primeira vista, a ideia parecia estúpida. John Ronald, um inglês de 24 anos que tinha acabado de se formar em letras na tradicional Universidade de Oxford, decidira inventar uma nova mitologia para seu país, inspirando-se nas lendas e línguas da Idade Média que o fascinavam desde a adolescência. Mitologias não costumam ser criações de uma só mente, mas histórias que correm de boca a ouvido por eras, até que um autor particularmente talentoso consiga cristalizá-las para sempre.
O
irônico é que, quando ele resolveu colocar o projeto em prática, na ressaca da
Primeira Guerra Mundial, pouca gente na Europa tinha estômago para histórias épicas
sobre espadas e cavaleiros, ou qualquer coisa relacionada a combate e glória
militar. O próprio John Ronald tinha participado da batalha mais sanguinolenta
da história inglesa. Em junho de 1916, o aspirante a criador de mitos
desembarcou na França, usando o uniforme de segundo-tenente de Sua Majestade.
Em pouco tempo, ele seria mais um combatente na Batalha de Somme, uma das mais
horrendas da Primeira Guerra Mundial, na qual tanques de guerra forma usados
pela primeira vez e morreram mais de um milhão de soldados de ambos os lados.
John
Ronald provavelmente só sobreviveu à guerra porque teve a sorte de ficar doente
e ser mandado para casa. Acabaria por tornar-se conhecido décadas mais tarde,
como J.R.R. (de John Ronald Ruel) Tolkien, o autor dos livros fundadores da
fantasia medieval: “O Hobbit” e “O senhor dos anéis”.
Talvez não fosse a intenção do modesto professor de inglês medieval, mas ele acabaria por criar todo um novo gênero não só de literatura – que continua a revelar grandes talentos, como George R.R. Martin, de “Game of Thrones” – como de filmes e mídias que nem existiam ainda, videogames e RPGs. Veja como isso aconteceu.
Talvez não fosse a intenção do modesto professor de inglês medieval, mas ele acabaria por criar todo um novo gênero não só de literatura – que continua a revelar grandes talentos, como George R.R. Martin, de “Game of Thrones” – como de filmes e mídias que nem existiam ainda, videogames e RPGs. Veja como isso aconteceu.
MITOS MODERNOS
Tolkien
foi original ao tentar reinventar a mitologia europeia, um projeto colossal que
ninguém havia tentado (ou achado razões para tentar) realizar antes dele. Mas Tolkien
não surgiu do nada. O trauma das Grandes Guerras talvez seja o melhor jeito de
explicar o renascimento pelo interesse pelas mitologias medievais que tomaria o
planeta de assalto com seu trabalho.
É
preciso recuar um pouco mais no tempo para entender o porquê de tudo isso. No século
19, a Idade Média estava na moda entre os intelectuais europeus, que a usavam
para tentar descobrir a suposta “essência” de seus países e de sua história. Poetas
ingleses reinventaram o Rei Arthur, compositores de ópera na Alemanha resolveram
se inspirar nas sagas da Escandinávia viking, escritores portugueses só queriam
saber de cruzados matando mouros, e por aí vai.
Não
por acaso, essa paixonite medieval coincidiu tanto com movimentos nacionalistas
quanto com a expansão colonial europeia na África e na Ásia. É claro que, no
longo prazo, isso de todo mundo se achar o máximo acabaria dando em caca – e deu,
levando à carnificina da Primeira Guerra Mundial, na qual muito moleque com a
cabeça cheia de ideias sobre “cavalheirismo” e “glória” bateu as botas. A natural
reação da maioria dos escritores e artistas que viveram nessa época foi
considerar que esses sonhos românticos medievais tinham sido perniciosos,
ajudando a levar a Europa pro abismo. Em outras palavras, chega de Rei Arthur e
de Thor.
Só
que uma minoria de intelectuais – e os mais influentes foram, disparado, Tolkien
e seu amigo C.S. Lewis, o criador de “As crônicas de Nárnia” – chegou justamente
à conclusão oposta. O século 20 estava virando um pesadelo, segundo eles, não
por mitologia de mais, mas por mitologia de menos. Sim, a guerra era um troço
horrendo, e devia ser evitada a todo custo, mas só tinha virando um massacre
industrializado sem precedentes porque muita gente não acreditava mais nos
padrões eternos de certo e errado que podiam ser encontrados, por exemplo, no
cerne das antigas mitologias. Era preciso recontá-las antes que fosse tarde.
Partindo
de uma matéria-prima confusa e desorganizada – na mitologia escandinava, por
exemplo, a diferença entre elfos e anões não é muito clara – Tolkien fez
questão de criar um universo consistente, sistematizado e lógico. Outro ponto importante
é a maneira como ele decidiu “limpar” sua matéria-prima – nas palavras do próprio
Tolkien, “purificando-a de seu lado grosseiro”. Embora seja possível reconhecer
as figuras de Odin e Thor nos “deuses” do universo do autor, os chamados Valar,
essas figuras divinas, na verdade, estão mais para anjos um pouco mais poderosos.
Em Tolkien, só existe um único Deus verdadeiro. Não por acaso, o autor era um
fervoroso (e conservador) católico apostólico romano.
“O
Hobbit”, primeiro livro da fantasia de Tolkien, saiu em 1937. Fez sucesso,
mas era destinado ao público infanto-juvenil. “O senhor dos anéis” foi
escrito durante a Segunda Guerra Mundial, e acabou publicado só em 1954. Só
virou um fenômeno de público em meados dos anos 60, graças ao lançamento de uma
edição pirata nos EUA. O timing não
poderia ter sido melhor, porque o livro acabou sendo “adotado” pelos hippies e
por muitos outros membros da juventude que, assim como Tolkien, achavam que o
mundo tinha entrado numa espiral de destruição no século 20. Nesse ponto, de
fato, o professor antiquado de Oxford e muitos fãs dos Beatles tinham algo em
comum: a visão negativa, contestadora, a respeito do mundo moderno.
As
semelhanças paravam por aí. Ao ver as referências (relativamente raras, na
verdade) à magia nos livros, a rapaziada de 1968 logo pensava em tradições místicas
pagãs ou orientais, que certamente levariam Tolkien a fazer o sinal-da-cruz e
sair correndo; liam sobre a celebre erva de cachimbo hobbit e logo pensavam em
maconha (embora Tolkien tivesse usado até o nome científico do tabaco, Nicotiana, para deixar claro que o troço
era simplesmente fumo mesmo).
Pouco
importava: o gênio já tinha saído da garrafa. Junto com as bandas de rock e o
sinal de paz e amor, o gênero da fantasia medieval virou parte inseparável do “pacote”
dos anos 60 (tanto que até os Beatles pensaram em produzir e estrelar sua própria
versão cinematográfica de “O senhor dos anéis”).
Para
atender essa demanda, imitações bastante deslavadas da obra tolkieniana
começaram a ser publicadas, vendendo feito pãozinho quente (um dos principais
exemplos é “A espada de Shanara”, do americano Terry Brooks, lançada em
1977). E um novo tipo de jogo, baseado na interpretação de personagens, fez da
fantasia medieval seu principal filão. Eram os RPGs (do inglês role playing game, “jogo de interpretar
papel”), que tem como um de seus primeiros e mais famosos exemplos o célebre “Dungeons and Dragons” (Calabouços e
Dragões), lançado originalmente em 1974.
Em
1976, a fantasia chegou aos computadores com “Colossal Cave Adventure”, dando origem ao RPG em videogame. E o
gênero continua a gerar fenômenos da cultura pop, como “World or Warcraft” e “The
Elder Scrolls: Skyrim”.
Colocando
nesses termos, pode ser que você fique com a impressão de que, após os anos de
ouro de Tolkien e Lewis, as recriações da mitologia medieval acabaram
lentamente virando um mistura de mercantilismo deslavado e escapismo barato. Na
verdade, tudo indica que não, ao menos não totalmente – e um dos melhores
contra-exemplos recentes é justamente “As crônicas de gelo e fogo” ou “Game
of Thrones”, como decidiram batizar a versão televisiva do universo do
romancista George R.R. Martin.
Sim,
a série é uma máquina de fazer dinheiro, e o mundo de Martin é muito mais cínico
que o de Tolkien. Mas o autor continua fazendo o que o mestre fez tão bem na
metade do século 20: usar elementos mitológicos para refletir sobre a natureza
do poder, do certo e do errado. E isso nunca deixará de ser relevante.
***
Então é isso, queridos leitores. Essa é a história por trás da história da Terra Média e seus incríveis habitantes. Essa é a história de como um simples professor, sem muitas pretensões, revolucionou a literatura mundial. De como um homem legou ao mundo uma das histórias mais fascinantes que a humanidade já inventou.
Gostaram? Então aproveitem para ver o último filme da trilogia e, claro, leiam o livro para saber as diferenças (sempre há) entre filme e livro.
Ah, em breve publicaremos aqui na Academia Literária-DF as diferenças entre os seres tolkienianos e os seres mitológicos nos quais Tolkien se inspirou. Aguardem!!!
No mais, divirtam-se. E até a próxima.
Referência
do texto:
- JOSÉ,
Reinaldo. Tolkien & Cia: a mitologia medieval renascida para o mundo atual.
Publicado em “Dossiê Super Interessante: Lendas Medievais”, edição 338-A,
outubro de 2014. Páginas 60 a 63.
Categorias:
Curiosidades•
Tolkien
O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade; sei lá de quê! - Florbela Espanca
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