RESENHA - O Coletor de Espíritos (Raphael Draccon)


Ficha técnica:
Referência bibliográfica: DRACCON, Raphael. O coletor de espíritos. 1ª edição. Rio de Janeiro, Fantástica Rocco, 2017. 263 páginas.
Gênero: Literatura Fantástica
Temas: Espíritos, lições de vida;
Categoria: Literatura Nacional
Ano de lançamento: 2017








“Foi no primeiro dia em que tentou se matar que Tobias bebeu muito além do que devia. E caiu no chão. E adormeceu sobre a terra. Depois do banho frio, Anastácia Handam deu-lhe o que comer e o colocou na rede para dormir. Quando ele acordou no dia seguinte já era dia e havia na mesa um prato de sopa. Tobias entrou naquela casa tomado pela vergonha, com o corpo endurecido e os olhos baixos. Mãe Anastácia não disse uma palavra dura, não fez um único sermão justificado nem elevou a voz em qualquer momento. Tratou-o como o homem digno que não era e o fez comer à mesa com suas cinco crianças.
Ele nunca esqueceu.
E, apesar de vez ou outra se render ao vício que o corpo doente exigia, havia decidido, se não parasse de beber, ao menos pararia de tentar se matar.”
Entretanto, você sabe como são os pecadores.
Nem sempre é fácil cumprir essas promessas”.
*O Coletor de Espíritos (pág. 18).

                Véu-vale.
Um vilarejo no meio de lugar nenhum, esquecido pelo tempo e pelo mundo. Um local sombrio, cuja iluminação é fornecida por tochas e a água vem da chuva. Os anos passam e Véu-Vale parece indiferente diante as mudanças, como se preso por toda a eternidade em uma redoma invisível. O vilarejo poderia ser mais um como tantos outros, não fossem os fenômenos inexplicáveis que acontecem durante o terceiro dia consecutivo das noites de chuva. São nesses dias que as trancas são passadas nas portas, que as crianças permanecem próximas aos pais e as mãos das mulheres tomam os terços.
E Véu-Vale se torna silêncio.
            O Coletor de Espíritos, obra de Raphael Draccon,  conta a história de Gualter Handam, um antigo morador de Véu-Vale ao abandonar o lar para tentar a vida na cidade grande tornou-se um psicólogo de renome, fazendo carreira atendendo casos de celebridades. Em um dia como qualquer outro, Gualter quase foi vítima fatal de um acidente de carro, porém foi salvo por “algo” que ele julgou em um primeiro momento ser um delírio de sua mente.
Enquanto tentava entender o que houve naquele dia, Gualter recebe um telefonema de um antigo amigo chamado Pedro. Em meio a um turbilhão de perguntas para o antigo amigo, Gualter recebe a bomba: sua mãe havia sofrido um infarto.  Gualter então viaja junto de sua namorada Marina para o último lugar do universo onde gostaria de estar e o que seria uma viagem de visita a uma mãe doente, se tornou a semente de uma jornada de autodescobrimento.


Tocante.
Se fosse possível descrever essa obra em uma palavra, é essa que eu usaria. Depois de uma experiência não tão boa assim com a série do Legado Ranger (não, ele é bom, mas poderia ter sido muito melhor). Enfim, eu não tinha muitas informações sobre a obra, apenas o motivador para ele tê-la escrito. Logo, não fui com sede ao pote e minhas leituras não estavam tão boas assim (preocupação com o TCC e outras coisas). E devo dizer que essa obra me pegou literalmente de guarda baixa. Essa é uma história que poderia (devidas proporções) acontecer com qualquer um. Uma pessoa que fugiu do passado em busca dos seus sonhos e ambições,  anos depois ele tem de confrontar o passado e voltar às origens para concluir negócios pendentes. Sintetizando em um trecho do próprio livro: “Tu sabe que o valor da vida de um homem vem das histórias que ele pode contar, não sabe?”.

“- Tu sabe que o valor da vida de um homem vem das histórias que ele pode contar, não sabe?
Ele sabia.
- Adoraria escutar as histórias daqui… - disse Marina.
- Peça para teu homem te contar. É um direito teu.
Gualter Handam parecia prestes a protestar.
- Não pretendo assustar Marina, mãe.
- Tu te assusta com tua própria história?
Houve um suspiro. O coração doeu.”
*O Coletor de Espíritos (pág. 71).

                Para quem já pegou alguma obra do Draccon para ler, essa aqui se assemelha um pouco a Espíritos de Gelo (a começar pelo nome). Tanto em O Coletor de Espíritos como em Espíritos de Gelo, o autor nos apresenta personagens misteriosos que a todo momento brincam com enigmas e carregam segredos tão bem enterrados que só conseguimos desvendá-los lá no clímax e com uma ajudinha do narrador.
Algo que achei sensacional é a capacidade do autor em criar mitologias usando-se de coisas que ao primeiro olhar parecem comuns. Quem diria que o simples ato de acender uma tocha poderia criar todo uma história mítica por trás dos acendedores. Não vou me aprofundar muito para não estragar (tanto) a experiência, mas explicando rapidamente, Véu-Vale não possui rede de eletricidade, logo, não há energia. Daí vocês já conseguem imaginar qual é o trabalho dos acendedores.

“Os acendedores passaram a viver daquele esforço e a atuar em todo o vilarejo. Juravam entre eles, tal qual um grupo de escoteiros que um acendedor sempre ilumina seu caminho, afinal, todo adolescente sabe que situações como essas passam a sensação de compromisso diante da passagem para o mundo adulto”.
*O Coletor de Espíritos (pág. 50).

                Não apenas deles, mas de toda Véu-Vale. Afinal, porque os moradores “escutam” no terceiro dia consecutivo de chuva? Porque Gualter sente o gosto de sangue na boca nesse período? Porque algumas pessoas parecem ser mais sensitivas que as outras? O que há de mítico na figura do Antigo? E de Karkumba? Quem é a mulher que Gualter tanto sonha? O protagonista, assim como os leitores, está lá para descobrir os segredos daquele lugar único no mundo.

O Paraíso havia fechado as portas para ele e só havia uma maneira de escapar do Inferno. Ele a encararia. Um homem quando sente que perdeu tudo o que importa na existência implora pela morte, quando acha que é tarde demais para implorar pela vida. Tobias não sabia como chegar a ela. Mas chegaria. Sentiu que braços o erguiam e o impulsionavam na direção da entrada disposta a recebê-lo. Naquela noite silenciosa e seca, ao menos, TObias não estaria só.
                                                               Karkumba o esperava”.
*O Coletor de Espíritos (pág. 82).



Não se enganem com o tamanho do livro. Apesar dele ser pequeno, ele contém muitas informações. Detalhes pequenos que fazem a diferença lá na frente, o que pode exigir atenção redobrada dos leitores e uma boa memória se não quiser voltar páginas para averiguar os detalhes que culminaram em algum acontecimento. Pouco a pouco juntamos os pedaços do quebra-cabeça que o autor montou dentro da narrativa e parte disso foi o que me compeliu a avançar cada vez mais rápido na leitura, pois o desejo de desvendar os mistérios de Véu-Vale crescia à medida que o protagonista Gualter e o narrador mostravam mais peculiaridades do vilarejo.
                Uma curiosidade bem curiosa mesmo: Draccon fez questão de inserir essa obra no mesmo universo de Fios de Prata. Existem algumas referências no livro que jogam na nossa esse fato, mas é em um trecho particular do livro que “surtei”, pois os dois personagens principais de ambos os livros aparecem juntos! Quase um crossover. Claro que não vou dar detalhes, mas para mim que leu Fios de Prata esse trecho em especial foi muito legal e me fez ter a vontade de ler novamente esse livro fantástico. Uma observação: acredito que exista também uma leve referência a Espíritos de Gelo, mas essa eu não posso afirmar com certeza. Um dia eu pergunto pra ele e atualizado aqui.     
             O que realmente tiro o chapéu para o autor é o modo como ele ambientou seus personagens dentro da obra. Tentando explicar: eles são gente como a gente. Eles são críveis, podendo muito bem fazer parte da nossa realidade e por mais que exista uma coisa sobrenatural na obra, seus personagens são tão humanos quanto eu e você. O que faz com que possamos nos identificar rapidamente com eles e, quem sabe, até encontrar semelhanças com alguém que conhecemos (ou com nós mesmos, vai saber). E junto a uma narrativa que sabe aproveitar cada detalhe de seus personagens, temos uma obra fantástica em mãos que merece a atenção dos leitores ávidos por histórias que mexem com o nosso emocional.
                Draccon, não sei se você vai ler isso um dia, mas sinto que preciso dizer o quanto sua história me tocou em um momento particularmente complicado da minha vida. Por me fazer ver (mais uma vez) que por mais que a vida bata em nós, precisamos nos levantar e bater de volta. Você tem o dom de inspirar as pessoas a sonharem mais alto. Obrigado por mais essa oportunidade de ver o bem que a leitura pode fazer na vida de alguém.



                A obra é narrada em terceira pessoa. Embora a narrativa seja linear, existem pedaços da história onde o narrador conta o passado de alguns personagens secundários que, como dito anteriormente, contribuem para montar mais um trecho do quebra cabeça e mesmo que Gualter seja o personagem principal da trama, ela não o acompanha a todo momento, permitindo que até mesmo capítulos inteiros do livro sejam dedicados a outros personagens, o que confere um dinamismo a mais na narrativa.
                A revisão está excelente. Se tinha algum erro passou batido. A formatação das páginas também está ótima, com letras bem espaçadas e fonte boa para leitura. O livro é dividido em três partes (Cheiro de Chuva, O Timbre da Chuva e o Choro da Chuva) e o Epílogo na sequência. O livro têm ao todo 50 capítulos, em sua maioria curtos, alguns não passando de uma página. Cada início de capítulo vem com a sua numeração e “rabiscos” ao fundo que simula a chuva (imagem acima). Por fim, há uma nota do autor e uma carta endereçada a pessoa que o motivou a escrever o livro.


                Raphael Draccon viaja desde garoto entre várias dimensões com a ajuda de livros, videogames e televisão. Romancista e roteirista premiado pela American Screenwriters Association, Raphael é um dos escritores mais influentes do mercado literário brasileiro e já conquistou uma verdadeira legião de leitores dentro e fora do país. Sua obra já foi publicada em Portugal e no México, onde entrou para a lista de mais vendidos. Atualmente vive em Los Angeles, onde trabalha com o mercado cinematográfico.
                Raphael Draccon sem sombra de dúvida é um dos maiores escritores de literatura fantástica da atualidade. E se você é, como eu, fã do trabalho do autor não pode deixar de conferir este que na opinião deste humilde blogueiro é seu livro mais tocante. Não só por conta da narrativa empregada na obra, mas pela motivação por trás do livro. Se você está em dúvida quanto a leitura deste livro, comece lendo a nota do autor e a carta ao final do livro. Se não forem motivos suficientes para comprar o livro, não sei o que mais poderá ser. Recomendo não só para seus fãs, mas para todo mundo que ainda tem fé que boas ações podem salvar vidas ou ao menos acalentar corações desesperados.
                Deixo aqui meus agradecimentos pessoais ao Draccon por me inspirar a ser alguém melhor do que eu fui ontem.       

        
Bibliografia de RAPHAEL DRACCON (ordem cronológica):


    Livros:
    • Dragões de Éter: Caçadores de Bruxas - Editora Planeta (2007);
    • Dragões de Éter: Corações de Neve - Editora Leya Brasil (2009);
    • Dragões de Éter: Círculos de Chuva - Editora Leya Brasil (2010);
    • Espíritos de Gelo - Editora Leya Brasil (2011);
    • Fios de Prata: Reconstruindo Sandman - Editora Leya Brasil (2012);
    • Cemitério de Dragões: Legado Ranger 1 - Editora Rocco (2014).
    • Cidade dos Dragões: Legado Ranger 2 - Editora Rocco (2015)
    • Mundo de Dragões: Legado Ranger 3 - Editora Rocco (2016)
    • O Coletor de Espíritos - Editora Rocco (2017)


    Luciano Vellasco

    Sou o cara que brinca de ser escritor e se diverte em ser leitor. Apaixonado por livros, fotografia e escrever. Jogador de rpg nos domingos livres, colecionador de Action Figures e Edições Limitadas de jogos. Cinéfilo, amante de series e animes. Estou sempre em busca de conhecer novas pessoas e aprender com cada uma delas e por último, mas não menos importante: um lendário sonhador.
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