CONTO - Sobre rodas




Título: Sobre Rodas
Classificação: livre.
Gênero: Crônica.
Sinopse: Um homem viaja para Brasília para visitar os amigos e encontrar um local para construir seu lar.



Um utilitário corta a estrada rumo a Brasília. Em seu interior, um único ocupante. Um homem jovem, 35 anos, alto, magro, feições retas e gentis. Não é a primeira vez que visita a capital do país. Na verdade, já fizera esse mesmo trajeto incontáveis vezes. Gostava de Brasília. Gostava do jeito diferente e incomum da cidade. Sentia-se mergulhando em uma utopia, em uma cidade dos sonhos. Não que a capital fosse uma cidade perfeita. Estava muito longe disso. Tinha problemas como qualquer outra cidade e tinha problemas que eram somente seus. Mas ele, o homem no utilitário negro, sabia que a cidade nascera dos sonhos de vários homens. De um padre que sonhara com o Poder no interior do país. De um presidente que reavivara o sonho do padre. De um urbanista que colocara em prática os sonhos de outros urbanistas que idealizavam cidades que fossem mais funcionais. O homem não era arquiteto mas se interessa por urbanismo. Gostava de estudar a história das cidades, um hobby desenvolvido ainda durante a adolescência, e, vez ou outra, acabava esbarrando em livros de teoria urbanística.
A chuva havia começado a cair a pouco mais de dez minutos. Uma chuva fininha, apenas o suficiente para obrigá-lo a manter o limpador de para-brisas ligado na velocidade mais baixa. Sua vinda à Brasília dessa vez tinha uma motivação diferente. Estava resolvido a mudar-se para a cidade. Conhecia-a muito bem, já havia morado nela quando rapazola. Seu pai militar era transferido de tempos em tempos e, numa dessas, veio parar em Brasília. Ficaram por cinco anos e outra transferência os levou para Curitiba. Agora ele voltava. Ficaria hospedado na casa de um amigo por alguns dias, procuraria um terreno que o cativasse – já tinha um local em mente –, fecharia o negócio e então voltaria para sua casa a fim de preparar tudo o que fosse necessário para a construção da nova morada. Seria o lugar em que viveria nos próximos anos de sua vida, e, a menos que o destino o levasse por outros caminhos, isso queira dizer – ao menos essa era sua intenção – a vida toda. Ali viveria com sua mulher, quando encontrasse a pessoa certa. Ali criaria seus filhos, caso viesse a tê-los. Ali desfrutaria a companhia de seus pais em sua velhice, se eles assim desejassem. Ali gozaria a sua própria velhice, se tivesse o privilegio de alcançá-la. Aquele seria o seu lugar. Aquele seria o seu lar.
Era um homem solteiro e morava sozinho. Saíra da casa dos pais logo após a faculdade. Graduou-se em Artes Plásticas. No princípio, isso foi uma questão delicada. Recebeu o apoio incondicional da mãe, é claro, ela apenas queria que o filho fosse feliz. Mas o pai foi contra. Queria que fosse médico como o avô havia sido. Não via com bons olhos a idéia do filho em se tornar um artista. Mas apesar da rigidez militar e das atitudes por vezes turronas, acabou cedendo ao perceber que o filho estava realmente decido a levar a cabo sua escolha. No fim, provocou lágrimas de contentamento e gratidão no filho ao deixar suas próprias lágrimas sinceras de orgulho rolar pelo rosto ao entregar-lhe o diploma em sua cerimônia de colação de grau. Ele só vira o pai chorar uma única vez, muitos anos atrás. Graduado, morou na Itália durante o período de seu mestrado. Alguns anos depois, fez uma especialização na França. Era um homem profissionalmente realizado.
Livros, música, cinema. Apreciava as coisas boas da vida. Gostava de paz e quietude. De introspecção. Ajudava em seu trabalho. Mas não era melancólico e taciturno. Ao contrário, era alegre e vivaz. Acima de tudo, gostava de sentir. E podia sentir de varias maneiras. Sentia a música e sentia o silêncio. Sentia uma paisagem e também uma imagem. Sentia o agradável calor humano e a igualmente agradável ausência dele. Sentia o aroma e o sabor. Sentia-se livre ao dirigir. Adorava cozinhar. Adorava ler e escrever. Adorava a companhia dos amigos e gostava de ficar só. Gostava de estar e sentir-se em casa.
Finalmente estava chegando à Brasília. Aquelas estradas eram tão familiares. Já havia passado por elas dezenas, talvez centenas de vezes. Aquele trecho específico despertava-lhe muitas sensações. Lembrava-se sempre, com nitidez desconfortante, de uma manhã chuvosa em que o carro da família capotara naquela curva. Felizmente, ninguém morreu. Mas a primeira vez que viu o pai chorar foi em decorrência daquele episódio. Espantou as lembranças desagradáveis da cabeça. Rodou por mais alguns minutos. A chuvinha fina cessou de vez. Saiu da estrada, entrou por um acesso lateral e passou pela cancela. Parou o utilitário em uma das vagas sinalizadas do estacionamento do shopping. Abriu a porta, tirou a cadeira motorizada com a destreza habitual, transferiu-se do banco do carro para o assento da cadeira e seguiu para a entrada do shopping. Iria comprar uma bela garrafa de vinho e alguns chocolates para presentear o amigo e a esposa. Afinal, o nascimento do primeiro filho do casal não poderia passar em branco. E como de costume, ele prepararia um belíssimo jantar na casa dos amigos, algo que se tornara uma tradição entre eles sempre que vinha visitá-los em Brasília.



Autora: Helkem Hellem de Araújo
Idade: 28 anos
Localidade: Brasília
Redes Sociais: Facebook



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Helkem Araujo

O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade; sei lá de quê! - Florbela Espanca
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Comentários
13 Comentários

13 comentários :

  1. Por não ser de Brasília eu me identifiquei tanto com sua Crônica! Minha parte favorita é "Acima de tudo, gostava de sentir. E podia sentir de varias maneiras. Sentia a música e sentia o silêncio. Sentia uma paisagem e também uma imagem. Sentia o agradável calor humano e a igualmente agradável ausência dele."

    Parabéns Helkem, adorei sua crônica, espero ver mais por aqui
    SeteCoisas.com

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    1. Oi Brunno,
      Essa parte aí é um pouco com eu me sinto.
      Que bom que vc gostou .

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  2. gostei do conto. Não me impactou de forma assombrosa, mas achei bem escrito, termina de maneira coerente. É bem fechadinho, amarrado...
    parabéns pelo conto. ^^

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    1. Oi Maria Valeria.
      Esse conto foi escrito sem nenhuma pretensão. Foi o pano de fundo para meu projeto final de graduação. Sou arquiteta e precisava de um "cliente" pra desenvolver meu projeto.
      Ainda que não tenha sido impactante, fico feliz que tenha gostado.

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  3. Olá! Gostei do conto. A história vai crescendo aos pouco e envolvendo. Parabéns Helkem!

    Ps.: este blog é muito interessante! Voltarei mais vezes. Um abraço!

    Pensamentos Valem Ouro

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    1. Olá Vanessa.
      Sinta-se a vontade pra voltar sempre que quiser. Ficamos muito felizes quando percebemos que um leitor nos visitou, gostou do que viu e volta outras vezes.
      Seja muito bem vinda.

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  4. Olá!
    O texto ficou bem construído, o desfecho foi muito bom.
    Me parece um texto jovial e que prende rapidamente o leitor.
    http://www.poesianaalma.com.br/

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    1. Olá Lilian
      Vejo vc sempre por aqui, lendo e participando.
      Obrigada por nós prestigiar prestigiar.

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  5. Ola! Imagineis vários finais enquanto lia mas nenhum se aproximou do final que escreveu.gostei da escrita e principalmente por ter fugido do óbvio.

    BEIJOSSsss...

    http://sonhosdeleitor.blogspot.com.br/.

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    1. Oi Janaina,
      Tanto na vida real quando na ficção, o foco quase sempre fica naquilo que torna a pessoa diferente da maioria. É gay, cadeirante, cego, gordo, nerd... As pessoas dão importância exagerada a essas coisas e esquecem que essas são apenas uma das muitas características que compõem esses "personagens" (reais ou fictícios fictício).
      Quis tratar nesse conto uma dessas características como elas deveriam sempre ser tratadas, com naturalidade.
      Que bom que te surpreendi.

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  6. Oi Helken! Menina vc domina muito o dom da escrita. consegui visualizar as cenas que vc ia narrando. Não conheço Brasilia, ainda, mas hei de conhecer. Vc fechou o conto com chave de ouro, adorei o final. bjs
    www.amoracompimenta.com

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  7. Fantástico amiga. Você tem o dom!!! *-*

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