RESENHA - Dias Perfeitos (Raphael Montes)

Raphael Montes
Ficha técnica:
Referência bibliográfica: MONTES, Raphael. Dias perfeitos. 1ª edição. São Paulo, Companhia das Letras, 2014. 274 páginas.
Gênero: Romance policial.
Temas: Psicopatia, paixão doentia, sequestro.
Categoria: Literatura Nacional.
Ano de lançamento: 2014.
















“Clarice continuava com os insultos. A voz rouca e doce era a mesma, os trejeitos também, mas aquela era outra mulher. Não era sua Clarice. Ele avançou, precisando calá-la. Ergueu o livro e bateu violentamente na cabeça dela. Clarice contra Clarice. Bateu várias vezes, até que ela ficasse quieta.
O corpo magricelo tombou sobre a mesa de centro. Sangue escorreu pela nuca, tingindo um par de blusas no chão. A capa do livro, antes uma figura amorfa de cores claras, também se manchou de vermelho-escuro. Clarice não se movia. Ele testou a pulsação: viva, ainda.
O alívio não foi o suficiente para vencer o tremor das pernas. Olhou para a porta, pressentindo a chegada de alguém. Passos no assoalho. Sua imaginação o impedia de se mover. Ninguém apareceu. Ele era coerente, racional, inabalável; acabaria descobrindo o que fazer. A paz imóvel de Clarice incitava seus nervos numa brincadeira sádica.
Abriu as duas Samsonite cor-de-rosa, transferindo as peças da maior para a menor. Espremeu as roupas na mala pequena, fazendo correr o zíper com alguma dificuldade. Espremeu Clarice na mala grande, deixando uma fresta para que ela respirasse. Arrumou as roupas que sobraram no sofá. Guardou o celular dela no bolso.”
*Dias Perfeitos (pág. 43 e 44).


                Um rapaz e uma moça se encontram casualmente em um churrasco de um conhecido em comum. Entre conversas banais, um selinho ocorre por iniciativa dela. Assim começa a história de Téo e Clarice. Ele, um estudante de Medicina, careta, vegetariano, metódico, frio, até então incapaz de sentir qualquer traço de afeição por qualquer pessoa. Filho único de um desembargador corrupto e suicida e de uma mãe presa a uma cadeira de rodas. Ela, uma estudante de História da Arte, descolada, extrovertida e impulsiva, aspirante a roteirista de cinema que está escrevendo o roteiro de um road movie . Filha única de um engenheiro e de uma advogada, ambos com carreiras de sucesso. Um casal bastante comum não fosse um detalhe: Téo é um psicopata e Clarice já tinha um namorado. Mas a súbita e inédita atração de Téo por Clarice faz com que ele arquitete um plano para se aproximar dela. Diante da recusa da moça e em meio a uma acalorada discussão, ele acaba por sequestra-la e leva-la inconsciente para sua casa. Decidido a provar seu amor para Clarice e mostrar-lhe que ela poderia ser feliz a seu lado, Téo decide sair do Rio de Janeiro com a garota (literalmente) na mala para irem juntos a Teresópolis. E então uma viagem alucinante se inicia, começando pela pousada predileta da moça, seu recanto de paz e inspiração, e seguindo pelos cenários de seu road movie ainda não concluído. Uma viagem em que Téo mergulha cada vez mais fundo em sua obsessão por Clarice, levando até as últimas consequências sua doentia “paixão”. Uma viagem em que Clarice se vê subjugada, forçada a concluir seu roteiro, forçada a conviver com um completo estranho que diz amá-la e que lhe causa pavor, refém do “amor”, da loucura e das ameaças de Téo.
                Há um antigo ditado que diz que no amor e na guerra vale tudo. Será mesmo? Imagine alguém irreverente, que não reprime seus instintos e que, num impulso passageiro e descompromissado, beija um desconhecido em um entediante churrasco vespertino no aniversário de alguém. Agora imagine que, numa dessas ironias da vida, desafortunadamente e sem intenção, essa pessoa acabe por despertar nesse estranho um lado desconhecido mesmo a ele, um “amor” doentio e obsessivo. A história de Clarice e Téo caminha por essa perspectiva e embarca numa jornada verdadeiramente alucinante. Ele, que sempre ostentara uma máscara de bom moço, educado e amoroso, mas que sempre se sentira diferente, um monstro desprovido de sentimentos e qualquer tipo de apego, desprezando as pessoas, preso a uma vida rotineira e monótona, vê seu mundo interior ser virado do avesso ao ser confrontado pela impulsividade de uma garota um tanto excêntrica. E quando esse ato descompromissado dela desperta nele uma louca obsessão, ele ignora todos os limites e convenções sociais, éticas e morais para tentar conquista-la. Um sequestro, uma viagem; presentes, pequenos agrados, gestos de carinho e de cuidado se misturam e se somam a algemas, sedativos, acessos de fúria e violência. Téo subjuga Clarice e verdadeiramente acredita que assim a fará perceber que ele é o homem certo para ela. Somente então, isolados do mundo – contra a vontade dela –, que a verdadeira face de Téo se revela. Um homem perturbado, rigoroso, controlador, simultaneamente delicado e perverso, com uma visão muito distorcida do que é o amor e do que constitui uma relação amorosa e um relacionamento. E capaz dos atos mais extremos.
                A construção gradual do caráter psicológico e patológico de Téo é excepcional. A narrativa em terceira pessoa, com foco total no protagonista, se desenvolve de forma a transmitir as várias nuances da personalidade do jovem estudante de medicina. Desde seus hábitos rotineiros e seu estilo de vida até suas reações ao comportamento de Clarice, que obviamente não aceita passivamente sua condição de prisioneira. A psicopatia dele transparece em cada detalhe revelado. Ele é um homem frio e calculista e, sobretudo, extremamente racional. Seu encontro com Clarice desperta nele algo que ele não conhecia e com qual não sabia lidar e esse é o estopim para todas as suas ações futuras. É interessante observar o raciocínio de Téo. Todo o livro é narrado pela ótica dele, então seu pensamento é transparente ao leitor e toda a sua lógica distorcida é esmiuçada ao logo da obra. Já Clarice, como segunda personagem central nessa trama, recebeu atenção especial do autor, tendo sua personalidade bem trabalhada (ainda que apresentada e analisada pelos olhos de Téo). Há três viradas importantes na história de tirar o folego. A segunda é a mais impactante, onde Téo toma uma atitude que vai deixar muita gente chocada (sou uma dessas pessoas: cheguei a fechar o livro e larga-lo por algumas horas para processar a informação). A terceira e última é a que concluí o livro e, possivelmente, vai pegar muito leitor de surpresa, conduzindo a um desfecho curioso e instigante, para dizer o mínimo.
                “Dias perfeitos” é um livro que desperta muitas sensações e emoções contraditórias no leitor. É difícil não ficar curioso acerca dos pensamentos e das ações de Téo. É difícil não se compadecer da situação de Clarice em seu cárcere físico e psicológico.  É difícil segurar a ansiedade em cada reviravolta da história. Como uma aranha que habilmente constrói uma teia para capturar a presa, o autor construiu sua trama de modo a prender atenção do leitor cada vez mais e mais. O ritmo da narrativa em muito contribui para isso: começa mais lenta e vai se acelerando gradativamente, transmitindo certa urgência à leitura à medida que a situação de Téo e Clarice vai ganhando contornos mais dramáticos e irreversíveis. Entretanto, os capítulos finais do livro são nitidamente mais corridos que os demais, com eventos decisivos acontecendo aos montes em poucas páginas, algo que, felizmente, não chega a comprometer a história. O texto é fluido e linear, a linguagem é bem empregada, sem coloquialismos exagerados nem rebuscamentos desnecessários. O autor abdicou de travessões indicativos das falas dos personagens, substituindo-os por aspas. A revisão está impecável e a formatação, simples e coerente com a proposta do livro. Um detalhe interessante: no trecho onde há uma transcrição do roteiro incompleto de Clarice, a fonte usada é diferente e o texto está todo marcado por anotações manuscritas, como se aquele fosse realmente o rascunho dela. Outro detalhe digno de nota: “Dias perfeitos” é também o nome do roteiro em que Clarice estava trabalhando e, em um dado momento, Téo chega a se divertir com a ironia da situação:

“Ele estava confiante: viajaria com Clarice para Teresópolis, iria conquistá-la aos poucos e – riu do trocadilho – juntos viveriam dias perfeitos.”
*pág. 68

                Este livro tão arrebatador é a segunda obra de Raphael Montes, um advogado carioca nascido em 1990. Seu romance de estreia, “Suicidas”, foi vencedor do Prêmio Benvirá de Literatura em 2010 e também finalista dos Prêmio Machado de Assis (2012) e Prêmio São Paulo de Literatura (2013). Desde então, Montes vem se descantando como um promissor talento no cenário da literatura policial nacional, sendo, inclusive, elogiado pelo renomado escritor americano Scott Turow.  “Dias perfeitos” está fazendo tanto sucesso quanto seu predecessor e já teve seus direitos de publicação vendidos para nove países, entre eles Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, França e Portugal. Ambos os livros tiveram seus direitos vendidos ao cinema.
                “Dias perfeitos” é um daqueles livros que o leitor não consegue largar até chegar, esbaforido, à ultima página. Com uma história claustrofóbica, tensa e angustiante, é aposta certa para leitores que cultivam o gosto por personagens profundos, de mente complexa e perturbada. Altamente recomendado.





Bibliografia de Raphael Montes (ordem cronológica):

Livros:
  • Suicidas – Editora Saraiva (2012);
  • Dias perfeitos – Companhia das Letras (2014).


Participações:
  • Assassinos S/A – Editora Multifoco (2009) com o conto “A professora”;
  • Beco do crime – Editora Multifoco (2009) com o conto “O amor por Esther”;
  • Demônios VII: Gula – Editora Estronho (2011) com o conto “Banquete”;
  • Demônios VII: Inveja – Editora Estronho (2011) com o conto “As irmãs Valia, Velma e Vonda”;
  • Demônios VII: Luxúria – Editora Estronho (2011) com o conto “A doce Jekaterina”;
  • Clube da Leitura – Editora Flanêur (2012) com os contos “Café” e “Depoimento nº 220.919.20”;
  • Ellery Queen Mystery Magazine – Editora November (2012) com o conto “Statement nº 060.719-67”;
  • Para Copacabana com amor – Editora Oito e Meio (2013) com o conto “Balas de tamarindo”. 

Helkem Araujo

O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade; sei lá de quê! - Florbela Espanca
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Comentários
12 Comentários

12 comentários :

  1. Parece interessante. =D
    Fiquei curiosa pra saber quais são essas viradas na história. O.O

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    1. Bárbara, vc vai se surpreender! Sabe aquela em que disse que tive que fechar o livro? Essa foi chocante!

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  2. Tenho um pé atrás com esse livro. Ele já foi tema de um clube do livro de um bairro próximo de onde moro e vi debates sobre ele que me fizeram perceber que não é meu tipo de livro.
    Mas pela sua resenha dá pra ver que você realmente curtiu a história.
    O que você diz é exatamente como imagino que o livro seja: ele cria emoções contraditórias no leitor! Sei que tem momentos chocantes no livro e por enquanto não tenho interesse nele.
    Que bom que gostou da leitura :)

    Andresa Dias
    Leituras&Fofuras
    http://leiturasefofuras.blogspot.com.br/

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    1. Oi Andressa
      Se vc tem coração frági, não recomendo esse livro. Tem algumas cenas um tanto pesadas. O pior (ou melhor, no caso de quem gosta de personagens assim, tipo eu) é que o Téo faz tudo com tanta naturalidade, justifica seus atos com uma lógica tão perfeita que chega a fazer sentido! Distorcido mas faz sentido!

      Se um dia tomar coragem, fique preparada :)

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  3. Esse livro foi minha primeira experiência com Thriller Psicológico e o motivo por nunca mais conseguir largar as leituras do gênero. Me envolvi na história do início ao fim e durante o desenrolar da trama, me peguei até torcendo para o Téo, rs. O final foi perturbador, confesso que li umas três vezes para ter certeza se realmente era aquilo. Adorei a trama e adorei a resenha. Esse é um livro que sempre indico.

    Bjs, Glaucia.
    www.maisquelivros.com

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    1. Oi Glaucia
      Diz aí: é ou não é um livro pra amar ou odiar? E o Téo é ou não é sinistro?

      Eu amei. Que bom que vc tbm.

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  4. Oi ^^
    quando eu estava lendo a sinopse que eu li sangue já fiquei o-o pronto, é um livro mt louco. dito e feito haha.
    cara deve ser um turbilhão de emoções essa leitura. fiquei muito curiosa para ler pelo modo como vc descreveu o livro. acho que vou gostar muito dele ^^
    Seguindo o Coelho Branco

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    1. Oi Alice
      Quando vc ler esse livro, volte e me conte o que achou. Esse é um daqueles livros que vc não consegue guardar suas emoções só pra vc. Vc tem a necessidade de compartilhar. Vai por mim. Todo mundo que eu conheço que leu passou por isso.
      Então volte e nos conte :)

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  5. Esse livro é um daqueles que tá na lista de "quando eu criar coragem". Justamente pelo texto bem descrito na parte psicológica da coisa que eu fico meio tensa, tenho receio de ficar paranoica depois da leitura. Terror no geral me incomoda, mas quando é algo tão real, possível de acontecer com qualquer pessoa ao nosso lado, mexe mais comigo. Ainda não vi 1 pessoa que leu Dias Perfeitos e não gostou, aí cada vez mais eu fico curiosa.
    Beijinhos!
    Giulia - www.prazermechamolivro.com

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    1. Oi Giulia
      Então, é um livro tenso mesmo. Mas super vale a leitura. Dá um medo por saber que realmente existe gente assim como Téo e que podem estar do nosso lado e a gente nem perceber.

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  6. Oii, tudo bem? Nossa, que resenha incrível, descreveu perfeitamente tudo o que eu achei e senti durante a leitura. Essa narrativa nos faz entrar na mente do Téo e até entender a forma que ele age, por mais psicopata que isso seja. Nossa, em vários momentos eu tive que deixar o livro um pouco de lado e digerir o que tinha acontecido... e nossa, essas reviravoltas são mesmo intensas. E pensar que o livro é tão real e que tem gente que é assim mesmo.

    Achei a ideia de visitar os lugares do roteiro da Clarice incrível e a forma que a narrativa foi se desenvolvendo é realmente de tirar o fôlego e realmente não dá vontade de largar. Adorei a diagramação na parte do roteiro, parece mesmo que foi escrito por ela.

    Beijinhos,

    Rafaella Lima // Vamos Falar de Livros?

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    1. Oi Rafaella
      Esse foi um daqueles livros que eu leio de uma vez. A única parte que tive que largar pra processar a informação foi a parte mais chocante pra mi. Acho que vc deve saber de qual parte estou falando. Tenso demais, Jesus!!!

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