Ficha técnica:
Referência bibliográfica: FOBIYA,
Abu. Branca
dos Mortos e os 7 zumbis e outros contos macabros. 1ª edição. Curitiba,
Nerdbooks, 2012. 235 páginas.
Gênero: Terror;
Temas: Contos de fadas;
Categoria: Literatura Nacional;
Ano de lançamento: 2012.
“Começou com uma sensação capilar que o príncipe sentiu em sua boca. De
olhos fechados, ele achou que fosse um fio de cabelo se enroscando na
transbordante dança das línguas. Abriu os olhos e afastou o rosto, quando viu
uma pequena pata de aranha se projetar para fora da boca de Cindehella.
Sem controle sobre o próprio corpo, a jovem se ajoelhou com o queixo
erguido e a boca aberta, dando livre acesso a uma nuvem preta de aranhas,
pulgas e varejeiras que saiu de dentro de si. Famintos, os insetos saltavam em
direção aos convidados, devorando sua pele, olhos e músculos em frações de
segundos.”
*Branca dos Mortos e os 7 zumbis (pág. 128).
Quando os contos de fadas, tão
conhecidos e sempre tão auspiciosos, dão lugar a histórias horripilantes com
personagens nefastos e desfechos tétricos? Assim é Branca dos Mortos e os 7 zumbis e
outros contos macabros. Aqui, não espere finais felizes e grandes
lições de moral ou a inevitável vitória do Bem sobre o Mal. Neste livro, o
autor habilmente pegou as histórias universalmente conhecidas e as reinventou,
tirando delas qualquer beleza e inocência e dando vazão ao sombrio e ao
profano.
Embora seja um livro com uma pegada macabra e agourenta, Branca dos Mortos e os 7 zumbis não é um
livro pesado. Causa um certo desconforto pelo fato das histórias ali contadas
serem tão familiares e simultaneamente, devido a abordagem do autor, serem tão inéditas.
Mas não é uma narrativa que cause pesadelos ou algo assim. Ao contrário, ela
surpreende pela originalidade e pela criatividade.
É interessante observar que,
dentro de uma história central, como no caso da vendedora de fósforos, por
exemplo, o autor mesclou outras histórias e personagens de outros contos de
fada para criar um conto único. O leitor também irá notar que alguns personagens
transitam em vários contos da obra, ora assumindo um papel, ora outro. Ao longo
das várias narrativas, o leitor irá conhecer, por exemplo, a identidade da
Rainha Má, madrasta da Branca de Neve (ou Branca dos Mortos, nesse caso). Num exercício
de imaginação e criatividade louvável, o autor vai construindo ao longo dos
contos uma intrincada mas perceptível linha temporal – obviamente não
apresentada linearmente – que conecta todos as histórias em uma só. Além de
todas as surpresas, reviravoltas e desfechos macabros, talvez seja esse o maior
mérito da obra, algo realmente novo e instigante.
A
obra é composta por 11 contos, com enredos bastante familiares aos leitores,
mas que o autor acrescenta elementos novos e abordagens bem peculiares e perturbadoras.
São eles:
Branca dos Mortos e os sete zumbis
Uma rainha, ansiosa por ter filhos, vai
até a floresta maldita e faz um pacto com uma velha bruxa que vive por lá. Do
feitiço profano, nasce uma menina de cabelos negros como a noite, lábios
vermelhos como o sangue e pele branca como os olhos dos defuntos. Invejando a
beleza e a felicidade da rainha, a bruxa, oculta em meio aos súditos, oferece
uma maça envenenada à soberana que sucumbe ao feitiço sem jamais se decompor. A
bruxa, agora tornada bela e jovem novamente com a morte da rainha, encanta os
olhos do rei viúvo e, depois de desposá-lo, convence-lhe que a pobre Branca, amaldiçoada
por ser fruto de um feitiço, foi a responsável pela morte prematura da mãe. Relegada
ao desprezo, à miséria e à solidão, a princesa vê sua despressível vida mudar
quando a madrasta, tomada pela ânsia de ser de todas a mais bela, ordena que um
caçador a mate. Ao fugir pela floresta maldita, Branca e também a
madrasta-rainha, que não desistirá de matá-la, irão se deparar com o horror hediondo que ali
se esconde.
João, Maria e os outros
Em meio a fome e a miséria, um pai não
muito amoroso sede aos argumentos de sua odiosa esposa de que não valia a pena
gastar a pouca comida que lhes restava alimentando seus filhos ainda crianças.
Assim, o pai desnaturado abandona João e Maria na congelante e sombria floresta.
Mas ele e sua vil esposa, madrasta das desafortunadas crianças, iriam pagar caro
por seus atos.
Os três lobinhos
As histórias “Os três porquinhos” e “O menino
e o lobo” se fundem nesse conto que narra a história de três irmão lobos, descendentes
de uma outrora gloriosa raça injustiçada pelos deuses, que desafiaram as leis
de jamais tocar porcos e humanos, criaturas fracas, sem presa e de rara
inteligência protegidas pelos deuses.
A vendedora de fósforos e o vingador
Numa época em que a fome e miséria levava
muitos pais a abandonarem seus filhos, uma pequena menina foi obrigada pelo próprio
pai, bêbedo e sem qualquer afeição pela criança, a vagar durante a noite gelada para
vender fósforos. Um trágico fim esperava por ambos e uma lição a ser aprendida
por todos os pais, amorosos ou não.
Cindehella e o sapatinho infernal
Quando o rei resolve promover um baile
para encontrar a noiva ideal para seu amado filho, todas as moças são
convidadas. Mas Cindehella, mantida como a mais baixa das serviçais por sua
cruel madrasta e suas feias e mimadas filhas, seria a única que não teria
chance de ir ao baile e conhecer o príncipe. Até que uma “fada” madrinha vem em
seu auxilio e, num passe de mágica, Cindehella está magnificamente vestida e
uma suntuosa carruagem a espera. Mas a magia tem um preço. Um preço muito alto
e hediondo cobrado as doze badaladas da meia-noite.
A confissão
Um ancião recebe a visita da polícia
dizendo que o filho a muito desaparecido havia sido detido acusado de muitos
crimes. O pai, conhecedor do filho que tinha, foi até a delegacia para
questiona-lo a respeito de seus atos. E o filho, sem qualquer remorso e até com
satisfação ultrajante, confessa seus crimes. Nesse ponto, muitos contos de
fadas com desfechos trágicos são inseridos na narrativa, todos representados
como atos daquele filho cruel. Mas é a identidade de pai e filho, revelados ao
final, que impressiona e choca.
Bela incorrupta
Este conto, a princípio, nada tem ver com
os clássicos contos de fadas. Ambientado ao longo das primeiras décadas do séc.
XX, é apresentada a história de um cientista obcecado em descobrir como
reverter a morte. Depois de ter seu acesso a cadáveres negado e ser expulso da
universidade onde estudava, ele continuou seus experimentos em corpos adquiridos por meio de subornos com coveiros e legistas. Sua técnica de reanimação
mostrou-se eficaz mas carecia de um componente primordial: o conhecimento de
como frear a decomposição após a morte. Assim, ele dedicou-se a pesquisar os casos de cadáveres
incorruptíveis, aqueles que, por um motivo conhecido ou não, nunca se decompõem.
Quando o corpo de uma bela jovem, intacta e perfeita como se estivesse apenas
dormindo, é encontrado enterrado num esquife de vidro que este conto finalmente
revela sua conexão com os contos de fada.
O monstro
Apresentado em forma de poema – único neste
formato no livro – este conto narra a visita de um monstro horrendo ao
narrador.
O cemitério
À noite, em um cemitério, as almas dos
mortos saem de seus túmulos e vagueiam por ali. Um rapaz recém-falecido ouve o mais antigo dos fantasmas que ali habitam contar as histórias das outras
almas. Uma delas, uma garotinha, é uma personagem muito conhecida dos contos de
fadas...
Samarapunzel
Aqui, Wilhelm Grimm relata uma história
que lhe foi contada por seu irmão Jacob certa noite. A história sobre uma plantação de
rapunzéis cercada por altos muros e vigiada por uma mulher vestida de
branco. E sobre como um marido,
atendendo aos desejos de uma esposa grávida, rouba um dos rapunzéis e lhe dá de
comer, sem saber o grave erro que havia cometido. Com a morte da mãe após dar à
luz, a criança de cabelos negros, batizada Samarapunzel, é levada pela mulher
de branco para uma alta torre sem portas. Bem, o leitor já deve ter notado a
conexão com um famoso filme de terror....
O fim de todas a coisas
Um observador solitário é interpelado por
uma ninfa curiosa enquanto observava o planeta Terra vazio e estéril a não ser
por uma única casa remanescente da era dos homens.
Condizente com a temática de
contos de fadas, ainda que de forma sombria, a linguagem adotada pelo autor se
assemelha muito àquela empregada nos livros clássicos. Os contos são, em sua maioria,
narrados em terceira pessoa, com exceção do início de “Samarapunzel” e de “O
monstro”. Este último ainda apresenta a peculiaridade de ser em forma de versos.
Por se tratar de contos, e ainda fiel ao estereótipo dos contos de fadas,
nenhum personagem é desenvolvido a fundo. Mas as nuances das personalidades de
alguns deles ficam bem evidentes, o que é simultaneamente lindo e aterrador de
se observar. A diagramação é um show à parte! A Nerdbooks, selo editorial do
site Jovem Nerd (composto por site, podcast, rede social e loja online),
trabalha com uma proposta de entregar produtos caprichados aos seus consumidores,
para que eles tenham não apenas uma boa literatura mas também um item de
coleção. Assim, Branca dos Mortos e os 7
zumbis foi concebido e produzido com esmero: capa dura em preto com título em
efeito metalizado (técnica conhecida como hot stamp); contracapa em papel
preto com sutis estampas de caveiras e morcegos; miolo com papel de gramatura
alta (mais grosso) e texturizado; belíssimas ilustrações com design clássico
em cada conto; letra capitular rebuscada.
Ilustrações por Michel Borges |
Capa da segunda edição |
A mente por trás de dessa obra
maravilhosa é Abu Fobiya. Segundo a biografia presente no livro, “ o amargurado
e pessimista Abu Fobiya é heterônimo do gentil e saltitante Fábio Yabu, autor
de espalhafatosas histórias em quadrinhos e adocicados livros infantis”. Natural
de Santos-SP, Fábio Yabu é escritor, cronista, criador de desenhos animados e
roteirista de histórias em quadrinhos. Com uma carreira já consolidada na
literatura infantil com sua série “Princesas do Mar”, Yabu resolveu
enveredar-se pela literatura nerd sob o pseudônimo Abu Fobiya. Branca dos Mortos e os 7 zumbis foi sua
estreia nesse nicho literário. Além da imaginação de Yabu (ou Fobiya), essa
obra contou também com o talento do ilustrador Michel Borges, natural de Santo
André-SP.
Branca
dos Mortos e os 7 zumbis e outros contos macabros vai agradar em cheio aos
leitores que apreciam ver os clássicos contos infantis numa nova roupagem. Os que
cultivam pouca paciência para o corriqueiro “felizes para sempre” irão sentir
um imenso prazer em perceber que esse conceito não tem espaço nessa obra. Aos
que gostam do gênero Terror terão nessa obra um belo exemplar. A todos que
decidirem se aventurar nessas páginas, Branca
dos Mortos e os 7 zumbis mostrará que, sob o talento de uma mente criativa,
mesmo as histórias mais conhecidas podem ainda esconder mistérios e versões
ainda não contados.
Bibliografia de Fábio Yabu (ordem
cronológica):
Como Fábio Yabu:
- Combo Rangers – série de quadrinhos on-line (1998);
- Princesas do Mar – Panda Books (2004);
- Princesas do Mar: uma sombra na água – Panda Books (2006);
- Princesas do Mar: as cartas de vento – Panda Books (2007);
- Princesas do Mar: mistério na Escola do Mar – Panda Books (2008);
- Princesas do Mar: o peixe lendário – Panda Books (2008);
- Princesas do Mar: balada da princesa esquecida – Panda Books (2009);
- Princesas do Mar: tartarugas em perigo – Panda Books (2009);
- Princesas do Mar: o pequeno herói – Panda Books (2009);
- Princesas do Mar: a última princesa – Record (2012).
Como Abu Fobiya:
- Branca dos Mortos e os sete zumbis e outros contos macabros – Nerdbooks (2012);
- Protocolo Bluehand: zumbis – Nerdbooks (2012);
- Independência ou Mortos – Nerdbooks (2012).
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Resenhas
O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade; sei lá de quê! - Florbela Espanca
Leia Mais sobre a autora
Gente! Mas que livro é esse? Amei! Gosto muito de uma releitura de contos de fadas, mas macabra são bem poucas que já vi. Gostei, ele parece ser bem original e ao mesmo tempo capaz de fazer lembrar daquelas histórias que a gente já conhece. E parece bem bonito de diagramação também. Apaixonei *-*
ResponderExcluirHelkem!
ResponderExcluirAdoro releituras de contos de fadas e se vem com um tom totalmente diferente como aqui, fiquei mais que curiosa para conhecer...
Contos macabros são fascinantes e se bem escritos, ainda melhor.
E viva nossos autores nacionais que estão cada vez mais criativos.
“Buscamos, no outro, não a sabedoria do conselho, mas o silêncio da escuta; não a solidez do músculo, mas o colo que acolhe.” (Rubem Alves)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
TOP Comentarista de OUTUBRO com 3 livros + BRINDES e 3 ganhadores, participem!
O livro traz um conceito novo, apesar da ideia de releituras não ser inédita. O autor se arriscou ao misturar tantas histórias e tentar conectá-las. No mínimo nos deixa curiosos, o que já é um ponto positivo.
ResponderExcluirMeus deus, haja criatividade para fazer tantos contos paralelos! No entanto, pelo trecho que li no início, fiquei bem desconfortável mesmo, como você disse. Gostei da escrita do autor e fiquei morrendo de vontade pra conhecer o resto do livro. Sua resenha está ótima!
ResponderExcluirUm abraço!
http://paragrafosetravessoes.blogspot.com.br/