Os Vizinhos



—Ó João, se te fosse dado pedir ao Senhor alguma coisa, que lhe pedias tu?
—Eu? Bem pouco. Pedia-lhe saúde para mim e para os meus, mais a sua benção sobre as minhas terras que, duns tempos a esta parte, andam bem precisadas do favor divino.
— Só isso? Pois então se Deus aparecesse e quisesse amercear-te, só lhe pedias essa miséria?
—Para mim seria a melhor fortuna. E tu?
—Eu? Ah! eu... Havia de pedir tanto ouro, tanto! que eu e a minha gente, dia e noite contando-o, não chegássemos, ao fim da vida, a saber a soma exata da nossa fortuna.
—E para que tanto dinheiro?
—Ora! para ser o homem mais rico do mundo.
—Mas não o mais feliz.
—Como não? Que entendes tu por felicidade?
—Eu entendo que a felicidade é a saúde do corpo e a paz do espírito.
—Pois cá para mim é o dinheiro. Quem tem dinheiro tem tudo.
—Nem tudo.
Entraram numa trilha que cortava o canavial viçoso.
Rompia clara e fresca a manhã. Passarinhos cantavam nos ramos e as águas brandas que discorriam punham no ar agradável murmúrio. O sino da igreja rústica, onde os dois homens haviam ouvido a missa do Natal, bimbalhava festivamente.
E eles lá iam com os seus altos cajados, por entre as ervas discutindo a felicidade.
Os sítios eram contíguos: limitava-os uma cerca de espinhos. Junto à primeira porteira, o que ambicionava a fortuna incontável, despediu-se do companheiro.
— Então adeus, João. E olha que o Senhor não ficaria mais pobre se quisesse realizar o teu desejo. Adeus!
E o outro respondeu caminhando:
— E eu ficaria contente e renderia comovidas graças à sua misericórdia.
Entrou o ambicioso no terreiro do seu sítio e, ainda não avistara a casa, quando lhe pareceu ouvir alegre som metálico como de peças de ouro que rolassem tinindo. Estugou os passos ansiosos com o coração aos saltos, e, ao chegar à varanda, viu, sobre a mesa, um grande saco transbordando de ouro. E eram dobrões novos, reluzentes como se houvessem saído, naquela mesma manhã, da cunhagem. A mulher e os dois filhos empilhavam as moedas, tanto, porém, que viram o homem aparecer, correram a anunciar-lhe a boa nova.
Entrara ali um formoso menino e, sem dizer palavra, deixara sobre a mesa aquele saco de ouro. Como lidassem com ele para que dissesse quem era, donde vinha, apenas respondera: Que era portador dum presente de Deus. E, com tais palavras, desaparecera.
Lembrou-se, então, o homem da conversa que tivera com o vizinho e sorriu pensando: “Se Deus assim tão de pronto atendeu ao meu pedido avultado, por certo não deixou o dele sem resposta.” Pobre João! Como se ralará de inveja quando souber da minha riqueza.
Logo, porém, sem agradecer ao Senhor o generoso presente, disse para a mulher e para os filhos:
— Bem. Não percamos tempo. Há aí muito que contar. Vamos ver quantos dobrões há no saco, que nem por isso é tão grande como podia ser. Em menos de meia hora poderemos ter a tarefa acabada.
E os quatro, em volta da mesa, puseram-se a contar as moedas. À medida que perfaziam um conto separavam as pilhas e assim cobriram a mesa e foram depois arrumando nos aparadores e nos bancos.
Veio a noite, e o saco sempre a despejar moedas.
Uma luz amarela aclarou o interior da casa. As quatro criaturas alucinadas iam e vinham acastelando dobrões. Os móveis já estavam cobertos, passaram a juntá-los no chão. E não sentiam os dias nem as noites: contavam fascinadas pelo ouro.
A casa encheu-se. Arrastaram o saco para o paiol e o paiol ficou a deitar fora. Passaram ao moinho e abarrotaram-no; recolheram às tulhas, à abegoaria, a todos os cantos onde pudessem entesourar. Por fim, como o saco não se esvaziava, foram empilhando mesmo no terreiro e ao longo dos caminhos onde as plantas haviam mirrado.
         João, o modesto, logo ao passar a porteira do seu sítio, ficou deslumbrado vendo os seus milhos ostentando pendões viçosos, o seu feijoal alastrando, a sua vinha carregada, a fonte manando copiosamente, todo o seu gado nédio e luzidio, pastando afogado em ervas que haviam nascido em terreno sáfaro que sempre respondera com ingratidão a todo o trato e ao mais penoso granjeio.
E ainda não saíra do pasmo quando viu aparecer à porta do casebre, que uma roseira recente floria e perfumava, a mulher, que ele deixara no leito, tolhida e ardendo em febre, rindo, robusta e corada, como no tempo em que a vira, ainda donzela e a pedira por noiva.
Compreendendo imediatamente que, em tudo aquilo, andara a mão benéfica de Deus, antes de acudir à mulher, que o chamava, ajoelhou-se e agradeceu o milagre. Erguendo-se, então, encaminhou-se à casa e a mulher, atirando-se-lhe nos braços, disse:
— Apareceu aqui um formoso menino e, tomando do regador, que ali estava, saiu a regar as terras e, onde caía a água, fosse entre pedras, logo rebentava a planta. O gado, depois de beber, de entrezilhado que estava, ficou assim como o vês; os milhos murchos cresceram e apendoaram; o feijoal alastrou, o arroz veio logo a flux, as árvores cobriram-se de flores, a fonte entrou a manar e, para maior espanto meu, quando abri os paióis, vi que estavam atulhados.
—E que te disse o menino?
—Sorriu e desapareceu; e foi o seu sorriso que me pôs como estou. Logo senti-me outra: pude andar e com tanta facilidade e ligeireza que corri todo o sítio e vi que todo ele está ricamente coberto de flores e de frutos.
—Foi Jesus que aqui esteve, disse o bom homem.
—Nem podia ser outro, confirmou a mulher.
E João, pensando no vizinho, disse, sem sombra de inveja:
— Se foi Deus que nos fez assim felizes, também a sua graça deve ter chegado ao nosso vizinho.
— Como sabes? perguntou a mulher.
E João narrou a conversa que haviam entretido, depois da missa, atravessando o canavial que se dourava ao sol.
—Deve estar, a esta hora, a contar o seu ouro.
—Não é mais feliz do que nós, disse a mulher.
—Não é, decerto, afirmou João, vendo chegar, a zumbir, um louro enxame de abelhas procurando cortiço onde aboletar-se.
 Correram dias, correram meses. Todos os sábados João descia ao mercado e já havia comprado uma carreta para transportar os produtos da sua abençoada herdade, que prosperava a mais e mais, quando, uma vez, perguntaram-lhe pelo vizinho:
“Que era feito de tal homem que não aparecia?”
João sorriu lembrando-se da manhã do Natal.
“Para que havia ele de incomodar-se em lidas penosas se tinha, com certeza, mais ouro do que todos os reis da terra?” Quis, entretanto, convencer-se e, esvaziada a última ceira, subiu para a carreta resolvido a passar nas terras do vizinho.
Logo que avistou a porteira travou-se-lhe o coração pressago. Um matagal intonso cobria os caminhos; os talhões, outrora viçosos, desapareciam afogados em urtigas. Nem uma ovelha balia e do casebre não subia o fumo denunciador da vida. Estava tudo entristecido e calado como um cemitério.
João foi guiando lentamente o animal e o carro rangia por entre as ervas altas que haviam reconquistado o terreno, dantes tão rico em flor e em fruto.
Diante da porteira desceu e, depois de muito haver batido, resolveu penetrar com um pressentimento de desgraça. E foi.
O terreiro era um mato bravio. A parietária trepava nos muros tendidos do casebre. Aves sinistras abalaram vendo aproximar-se o homem curioso.
João, parando no terreiro, bradou para o casebre escancarado. Não teve resposta. Resolveu caminhar e foi.
Quando chegou ao limiar da casa viu pilhas e pilhas de moedas de ouro; tocando, porém, em uma delas estremeceu ao vê-la desfazer-se em pó. Prosseguiu.
Por toda a parte eram montões de ouro, mas como as tábuas do soalho oscilassem, a fortuna logo rolava convertida em poeira. E João seguiu até a sala de jantar.
Em volta da mesa estavam quatro esqueletos curvados sobre montes de ouro. João estacou aterrado e olhava, rezando, quando viu um morcego esvoaçar, doudejante em torno de um dos esqueletos e esconder-se-lhe no crânio como na própria lura.
Não se conteve então: recuando assombrado afastou-se da casa maldita e, mal chegou à porteira, ouviu grande estrondo como um desmoronamento. O casebre aluíra e uma poeirada negra escurecia os ares.
João persignou-se e, subindo para a carreta, tocou o animal fugindo àquele sítio malsinado, lembrando-se do ambicioso desejo do vizinho, que Deus satisfizera: “Tanto ouro, tanto! que ele e a sua gente, dia e noite, contando-o, não chegassem, ao fim da vida, a saber a soma exata da fortuna.” E ali tinham eles o ouro: poeira, somente poeira.
Os desgraçados haviam sucumbido à fadiga e à fome contando, sem pausa, as moedas que inexoravelmente transbordavam do saco inesgotável.
Quando avistou, por entre as árvores, a sua casinha alegre, toda em verdura, e viu o seu gado robusto e a sua cultura exuberante, de novo rendeu graças ao Senhor que ouvira o seu voto e lhe recompensara largamente o desejo modesto, dando-lhe a saúde, que é a riqueza do corpo, e a tranquilidade, que é a fortuna do espírito.
E os seus haveres eram mais que suficientes, porque não só lhe davam para a abastança como ainda deixavam sobras que eram repartidas em esmolas.
E assim, acudindo ao pobre, demonstrava ao Senhor a sua gratidão. E o outro, no próprio prêmio tivera o justo castigo da sua desmarcada ambição.
E foi assim que Jesus infante satisfez os desejos dos dois vizinhos.


Coelho Neto

Comentários
0 Comentários

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Deixe o seu comentário!