RESENHA - A máquina de contar histórias (Maurício Gomyde)

Maurício Gomyde
Ficha técnica:
Referência bibliográfica: GOMYDE, Maurício. A máquina de contar histórias. 1ª edição. Ribeirão Preto, Novo Conceito, 2014. 191 páginas.
Gênero: Drama.
Temas: relações familiares, pais e filhos, reconciliação, realização profissional x realização pessoal.
Categoria: Literatura Nacional.
Ano de lançamento: 2014.












“– Posso pedir mais um?
– A produção autoriza um sexto e último pedido? – O vídeo ficou em silêncio por alguns instantes, a imagem parada nos olhos tristes de Viviana. O zoom preencheu a tela com seu rosto.
– Desejo concedido.
– Eu quero que a Família V esteja completa ao meu lado quando eu for embora e... – Viviana então começou a chorar.
Após breve silêncio, ouviu-se também o choro de Valentina.
– Você vai realizar todos eles, mamãe. Tenha fé em Deus que vai, por mais do fundo da alma, fofos e impossíveis que pareçam.
Então o vídeo passou a filmar apenas um pedaço da cena das duas se abraçando, até apagar.
Na noite daquele 7 de maio, Vinícius era ovacionado a centenas de quilômetros de distância. Na noite daquele 7 de maio, Viviana morreu. E, na noite daquele 7 de maio, seu sexto e último pedido não foi atendido...”
*A máquina de contar histórias (pág. 61).



                Dinheiro, fama, prestígio, reconhecimento. Uma carreira bem sucedida conquistada com muita dedicação, esforço e empenho. Conquistada também com isolamento, distanciamento e ausências. Na noite do lançamento de seu décimo romance, Vinícius, um escritor best-seller saboreia o sucesso. Naquela noite sua atenção estava, como sempre esteve nos últimos anos, totalmente voltada para sua carreira. Naquela noite, porém, sua esposa morre vítima de leucemia, sozinha num quarto de hospital. A notícia o atinge como uma bomba na manhã seguinte. A dor e o desespero são ainda maiores ao reconhecer o ódio e o desprezo nas palavras e no olhar da filha primogênita.  E repentinamente o escritor consagrado percebe que negligenciou o convívio e o amor da esposa e das filhas por um ideal. Viviana estava morta. Valentina o odiava. A pequena Vida o culpava. A Família V estava despedaçada e o reconhecimento do mundo não parecia justificar o laço perdido. Entre remorso, culpa e sofrimento, Vinícius terá de encontrar uma maneira de superar a dor pela perda do amor de sua vida. Terá que reconquistar o respeito e o amor das filhas e redescobrir o que significa ser pai. E viverá, ao lado de Valentina e Vida, uma jornada única que mudará para sempre suas vidas.
                Imagine um homem no auge da carreira, bem-sucedido em todos os aspectos, mas que negligencia e até sacrifica o convívio e a interação familiar e pessoal em prol desse sucesso profissional. Assim é Vinícius Becker, um renomado escritor, aclamado pela crítica e pelo público. Metódico e detalhista, sua rotina começa ao raiar do dia e estende-se até o anoitecer, enfurnado em seu escritório no último pavimento de sua luxuosa casa, alheio ao que acontece nas demais dependências do lar da Familia V ou às três mulheres que a compõem. Ele dedicou todos seus esforços para alcançar o posto que tanto almejou.  No início da carreira, teve todo o apoio de Viviana, sua mulher, sua paixão. Enquanto ele escrevia e batalhava um lugar ao sol, ela trabalhava para prover a família composta por ela, Vinícius e a então pequena Valentina. Eram tempos bons e eles eram felizes. Com muito esforço e luta, Vinícius enfim conseguiu destaque no mundo literário. Veio uma nova gravidez e uma notícia bombástica: Viviana tinha leucemia, um tipo raro, agressivo e incurável. O nascimento da pequena Vida não foi o bastante para garantir a felicidade. Vinícius concentrou-se cada vez mais na carreira, fugindo consciente ou inconscientemente da doença da esposa ao invés de ampará-la em tão dura batalha. E, no processo, afastou-se pouco a pouco da filha que caminhava para adolescência e da filha que mal havia iniciado a infância. Focado no trabalho, mesmo dentro da mesma casa, acabou por perder a infância de ambas as filhas e os últimos anos de vida da mulher que tanto amava. E só se deu conta disso quando Viviana morreu sozinha enquanto ele celebrava o próprio sucesso. Quando Valentina cuspiu palavras de ódio e revolta em sua cara, acusando-o de abandono e negligência, de estar ausente em todos os momentos em que um pai e um marido deveria se fazer presente. Quando a pequena Vida, assustada e aos prantos, o esmurrou dizendo que tudo era culpa dele. E então ele percebeu que em seu afã de tornar-se um grande escritor, ele renunciou a amigos e família e perdeu o amor das filhas e a chance de mostrar a Viviana o mesmo companheirismo com que ela havia lhe presenteado ao longo dos anos. Vinícius percebeu o quanto fora egoísta e que fazia jus ao apelido que a imprensa lhe dera, “a máquina de contar histórias”, e que durante muito tempo comportou-se como uma máquina e faltou-lhe a capacidade de demonstrar às pessoas com as quais mais se importava os sentimentos que ele descrevia tão bem em seus romances. Enfim consciente de seus erros como pai e marido, Vinícius tenta encontrar uma forma de reparar o mal que fez às filhas e redimir-se perante a memória da mulher que tanto amou.
                A jornada de Vinícius, Valentina e Vida é tocante e emocionante. Mostra um pai que nada sabe sobre a filha de 16 anos e que se esforça sincera e verdadeiramente para conhecê-la e reconquistá-la. Mostra um pai que busca uma chance de acompanhar a infância e o crescimento da filha de 03 anos e não cometer os mesmos erros que cometeu com a primogênita. Mostra um homem arrependido por não ter sequer tentado um equilíbrio entre a vida profissional e familiar, priorizando uma em detrimento da outra. Mostra um homem disposto a mudar, a aprender com a vida e com a filha que, surpreendentemente, apresenta-se muito mais madura e consciente da importância e significado das coisas que o esperado para alguém tão jovem. E mostra uma filha ferida e magoada, cuja rebeldia e revolta são plenamente justificadas. Vinícius sabe que não pode compensá-la por tudo o que deixou de fazer, sabe que não pode voltar no tempo, trazer Viviane de volta e ser mais presente quando ela mais precisou, mas se esforça para mostrar às filhas que aprendeu a lição e que está disposto a mudar e ser o pai que elas desejam e merecem. Com Vida, ele encontra mais facilidade, já que a garotinha é ainda uma criança muito pequena que sequer entende direito o que está acontecendo. Com Valentina, Vinícius enfrenta muita resistência e muita dificuldade para conseguir se aproximar. Ao longo da história, e da viagem que ele planeja e coloca em ação, ele vai procurando pequenas brechas, coisas simples que os conectam como pai e filha, e que conecta os três ao quarto membro da família que já não está presente. Sem saber como se aproximar da filha, ele conta com a ajuda de uma improvável e enigmática confidente e conselheira. Cada dia da viagem é uma oportunidade de ele estar com as filhas, entender um pouco de seus mundos, conhecê-las melhor e, diferentemente do que havia feito durante tantos anos, aproveitar os momentos singelos em família e mostrar seu amor nos pequenos gestos e nas pequenas alegrias. E ele acaba descobrindo que Valentina é muito mais parecida com ele do que ele próprio imaginava.
                Uma das coisas que mais chama atenção é que o mesmo elemento que causou tamanha ruptura entre pai e filha torna-se, gradativamente, o elo que os une pouco a pouco: a literatura. Valentina cresceu profundamente magoada pelo fato de o pai ter preferido a literatura à família. Em sua visão, o pai era um hipócrita que descrevia com tamanha credibilidade em seus romances sentimentos os quais era incapaz de sentir ou demostrar. Para ela, Vinícius não sabia amar. E mesmo assim era capaz de arrancar lágrimas dos leitores com suas cenas bem construídas e seus parágrafos perfeitos, todos tão meticulosamente planejados para transbordar emoção. Para Vinícius, um bom livro era fruto de uma técnica perfeita de escrita. Para Valentina, uma boa história era “uma atitude de amor, de entrega ao que se quer contar” (pág. 95). E as conversas e discussões sobre literatura entre os dois eram uma forma de ambos expressarem suas visões de mundo, ora conflitantes, ora muito similares. E, sob esse prisma, as distâncias entre eles foram se estreitando, um aprendendo com o outro. As nuances das ideologias literárias de ambos se misturavam com as sutilezas dos propósitos de Vinícius sobre o roteiro e os eventos da viagem para formar um quadro em que ele pudesse enfim ser um pai para suas filhas.
                De enredo singelo mas tocante, “A máquina de contar histórias” é um livro prazeroso e fácil de ler. Narrada em terceira pessoa, texto com linguagem simples, bem escrito e bem estruturado, a obra cativa pelo drama crível e pelos personagens marcantes. Vinícius é um homem que fez da literatura uma profissão, no sentido mais literal da palavra, com fórmulas, tabelas de personagens e de ideias e uma rigidez espartana para com sua rotina e seu “processo criativo”. Valentina é uma adolescente cheia de ideias e convicções – como todos os adolescentes –, com uma personalidade forte e uma maturidade além de sua idade, consequência talvez de vivenciar o crítico estado de saúde da mãe e a ausência (ou fuga) do pai. O foco da história acaba se concentrando principalmente no drama da relação fragilizada de Vinícius e Valentina, uma vez que Viviana morre logo no começo do livro e não há mais nada que o marido possa fazer por ela; e Vida é ainda muito criança para nutrir algum sentimento negativo em relação ao pai. A estrutura do texto é linear, tendo alguns flashbacks que elucidam partes importantes do passado e que ajudam a compreender o contexto geral em que se insere a situação vivida pela família. Parafraseando o protagonista, a obra tem duas reviravoltas previsíveis e uma terceira realmente surpreendente. A capa é LINDA DE VIVER!!! Para você leitor que ainda não leu o livro saber e para você que já leu mas não percebeu, cada elemento que a compõe – o sorvete, a roda gigante, a máquina de escrever e a bailarina de vestido vermelho bem no centro unindo tudo – representa cada um dos integrantes da Família V. Lindo, não? É uma daquelas obras de arte que merece um pôster para poder ficar admirando. Parabéns ao ilustrador!  A diagramação e a revisão também estão impecáveis.  Um fato curioso: além de ser o apelido do protagonista, o título da obra é também o título do livro que ele estava lançando na noite em que sua mulher morre.
                “A máquina de contar histórias” é o quinto livro do paulistano Maurício Gomyde. Brasiliense de coração (vive na Capital Federal desde os 03 anos de idade!), são-paulino, geminiano, escritor, compositor e baterista, Gomyde tornou-se um fenômeno da auto-publicação com seus livros que tratam principalmente de pessoas e sentimentos. Com tamanho sucesso, publicou com a Novo Conceito e recentemente firmou contrato com a Intrínseca e já prepara seu sexto livro para breve. Apaixonado por música, sempre cria trilhas sonoras para suas obras. Diz que escreve ouvindo música e que não consegue dissociar literatura e musicalidade.
A máquina de contar histórias” é um daqueles livros que te faz pensar, avaliar a vida e analisar quais aspectos devem ocupar o posto de prioridade. É uma história cativante, sob medida para ler em dia de chuva, sob um cobertor quentinho e com uma bebida quente do lado. E quando concluída a leitura, ir até a pessoa que você ama, seja namorado ou namorada, pai, mãe ou filho, e dar um beijo e um abraço gostoso. Porque momentos vêm e vão, a vida é passageira e amor e carinho se refletem nos pequenos gestos. Se você concorda, esse livro é pra você.


 


Bibliografia de Maurício Gomyde (ordem cronológica):

Livros:
  • O Mundo de Vidro – Brasília Artes Gráficas (2005), republicado pela Porto 71 (2011);
  • Ainda não te disse nada – Porto 71 (2011);
  • O rosto que precede o sonho – Porto 71 (2012);
  • Dias melhores pra sempre – Porto 71 (2013);
  • A máquina de contar histórias – Novo Conceito (2014).


Helkem Araujo

O meu mundo não é como o dos outros, quero demais, exijo demais; há em mim uma sede de infinito, uma angústia constante que eu nem mesma compreendo, pois estou longe de ser uma pessoa; sou antes uma exaltada, com uma alma intensa, violenta, atormentada, uma alma que não se sente bem onde está, que tem saudade; sei lá de quê! - Florbela Espanca
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Comentários
4 Comentários

4 comentários :

  1. Esse livro foi minha primeira experiência com Gomyde e posso dizer que me apaixonei com a escrita dele no ato. Apesar de tão triste, a história fluiu bem leve comigo, não conseguia pausar de maneira alguma.. Li numa sentada'. xD
    realmente faz a gente pensar, principalmente nas coisas que a gt deixa de mão e que deveriam ter prioridade em nossa vida, e coisas meio que banais e a gt dá tanta importância...
    ótima resenha a sua..
    bjs

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  2. Olá. Já li a obra do autor e apesar de não ser muito meu estilo, não posso negar a genialidade dele. Escreve bem e é um grande nome da literatura nacional.
    http://www.poesianaalma.com.br/

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  3. Olá, poxa esta nossa vida e seus dilemas que sempre nos impulsionam por este ou aquele caminho e por vezes nos afastam das pessoas que amamos, não é mesmo?? gostei muito da resenha e a historia me pareceu bastante interessante.. parabéns ..
    ...http://florroxapoemasepoesias.blogspot.com.br/

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  4. Olá Maria, Lilian e Lunna

    Esse também foi o primeiro livro do Gomyde que li. Me causou uma ótima impressão. Ele escreve bem e a história dele tem muita consistência. Gostei mesmo.
    Esses dilemas pessoais e familiares são mesmo muito próximos de qualquer pessoa. Impossivel não se identificar em parte ou ser tocado pelo drama presente nas páginas.

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