RESENHA - Ordem Vermelha: Filhos da Degradação (Felipe Castilho)

Ficha técnica:
Referência bibliográfica: CASTILHO, Felipe. Ordem Vermelha - Filhos da Degradação. 1ª edição. Rio de Janeiro, Editora Intrínseca, 2017. 448 páginas.
Gênero: Fantasia Distópica.
Temas: Fantasia, deuses, conspirações.
Categoria: Literatura Nacional
Ano de lançamento: 2017
Série: Ordem Vermelha - Filhos da Degradação (Vol. 1)








“A espada balançou na mão dele como se fosse uma pluma. O kaorsh gritou em desafio e o atacou, golpeando de cima para baixo e atingindo a lâmina do forasteiro, que atravessou o cabo da arma do soldado e, no mesmo movimento, arrancou metade de sua cabeça.
O sangue espirrou no capuz vermelho do homem, que seguiu na direção dos outros soldados – mais precisamente, na direção do vão que havia sido aberto na parede de escudos.
Girando a espada num golpe lateral, ele fez os soldados recuarem às pressas. Com isso, avançou num passo ágil para dentro da clareira aberta no meio dos inimigos. Qualquer outro oponente evitaria ficar cercado por quase duas dezenas de homens armados, mas aquele parecia querer justamente isso.”
          *Ordem Vermelha – Filhos da Degradação (pág. 16).

                Aos pés do monte Ahtul, ao lado dos Grandes Pântanos está localizada a última região habitada no mundo: Untherak. A cidade é habitada por humanos, Kaorshs, gigantes, anões, gnholls e sinfos. Todas essas raças vivendo com o único propósito de adorar Una, a deusa unificada que controla tudo com mãos de ferro.
                Por milênios as raças coexistiam em relativa paz até o dia que a Kaorsh Yanisha descobre um terrível segredo que poderia abalar as estruturas do Palácio e consequentemente de toda Untherak. Junto com sua esposa, Raazi, ela arquiteta um plano corajoso mas também arriscado que poderia ceifar sua vida e de sua amada, tendo como palco o famigerado Festival da Morte. 
              Foi por causa desse festival que Aelian perdeu o pai. O jovem teve de aceitar a servidão bem cedo e mesmo tendo perdido tudo, nunca se esqueceu de como é ter uma família. Com o retorno do torneio ele se tornará não só testemunha dos acontecimentos que mudarão tudo para sempre, como também descobrirá que tem um papel muito importante no novo mundo que está para ser revelado.

Da esquerda para a direita: Raazi, Aelian e Una

             Ordem Vermelha – Filhos da Degradação é uma obra do autor Felipe Castilho, com cocriação de Rodrigo Bastos Didier e Victor Hugo Sousa. Na história somos apresentados ao jovem Aelian Oruz, um rapaz esperto e corajoso que trabalha desde a infância no Poleiro para quitar uma dívida de família. Isso se deu após seus pais tentarem garantir a semi-liberdade do garoto, mas ao perderem suas vidas, o condenaram a começar seus anos de servidão a soberana Una mais cedo.

“[...] Com a melhor das intenções, os pais de Aelian apostaram tudo e condenaram um garoto de seis anos a começar mais cedo as obrigações que tinha com a soberana. E aquele menino jamais imaginaria o quanto as apostas fariam parte de sua vida dali em diante”.
*Ordem Vermelha – Filhos da Degradação (pág. 22).

                Paralelamente à história de Aelian, somos apresentados a Kaorsh Raazi e sua esposa Yanisha. Essa última serviu no Palácio de Una durante muitos anos e lá descobriu algo terrível que assombrou seus pesadelos até o momento em que decidiu, junto de Raazi bolar um plano para revelar a todo o povo de Untherak o que descobriu. E seu plano envolvia a participação das duas no Festival da Morte.

- Eu pensei que soubesse. O que você acha que vai acontecer depois que mostrarmos a verdade? A união de todos? Um levante? Que consciência será despertada em pessoas como essas? – perguntou, apontando para o que restava da casa.
Yanisha demorou olhando para o lugar que Raazi indicava. Parecia mais interessada no contraste da mão dela diante da luz das chamas do que no fogo em si.
- Nós somos as fagulhas que darão início à fogueira. Talvez o vento nos sopre para longe, talvez possamos iniciar um incêndio. – Ela segurou o rosto da esposa nas mãos. O calor entre as duas era mais poderoso que aquele que obliterava seu antigo lar. – Como fagulhas, o que fazemos de melhor é brilhar. Queimar.
*Ordem Vermelha – Filhos da Degradação (pág. 87).

                Mas antes de tudo isso, o autor nos leva em algum ponto no futuro. Nas páginas de cor negra somos apresentados a um homem de manto vermelho e espada gigante que adentra em uma Untherak entregue à miséria (como se aquele pedaço de mundo já não fosse miserável o bastante) derrotando todo mundo que ousasse cruzar seu caminho. E aqui vale uma curiosidade: enquanto lia sobre esse misterioso homem que vestia um manto vermelho e rodopiava uma imensa espada que fatiava na força bruta tudo que tocava, não conseguia parar de pensar que ele se parecia com o Gutz, do Mangá/Anime Berserker.
Um cara com uma capa, espada gigante, dilacerando inimigos. Impossível dar errado 💀

Claro que fui tirar a dúvida com o autor, que me confirmou que o homem era uma clara referência ao Espadachim Negro. Esse homem que veio da Degradação (como se já não fosse absurdo o suficiente usar um manto da cor proibida) tinha alguma relação com a cidade, já que ao abordar um mendigo fez perguntas como se ele já tivesse vivido ali antes. E devo dizer que esse trecho foi uma “maldade” à parte do autor, já que os momentos onde esse personagem aparece são muito distantes um do outro e quando finalmente descobrimos quem é ele… o livro acaba. Sim, acaba. Já aviso logo para poupar vocês do choque. Cadê a segunda edição, senhor Castilho? (rsrs)
Essa não é a única referência que pude encontrar na obra. Aelian não é só um jovem esperto, ele também é um exímio escalador que vive saltando de prédio em prédio para dar suas escapadas. E logo no começo do livro é dito que há um assassino em Untherak que usava um capuz pontudo e assassinava seus inimigos com setas envenenadas… para quem não pegou essa, eu explico: são qualidades, por assim dizer, dos assassinos em Assassin’s Creed. Existem outras mais sutis, mas vou focar só nessas duas porque senão farei uma resenha só com referências legais.
E o que falar desses personagens únicos? Cada novo personagem apresentado na obra enriquecia ainda mais a experiência de leitura. Adoraria falar sobre cada um deles aqui, mas essa resenha ficaria enorme. Dos personagens centrais aos personagens mais secundários, todos têm algo interessante para acrescentar à narrativa.

Artes conceituais dos personagens. Obs: Eu imaginava o Aelian bem mais jovem que isso.
O livro também fala de um novo mundo que é a cidade de Untherak. A obra toda se passa dentro das muralhas da cidadela, pois todos aprendem desde cedo que não existe vida na Degradação. E por intermédio dos personagens somos apresentados a localidades como o Miolo, os assentamentos (uma alegoria às favelas), o Pâncreas de Gifro (não podem faltar tavernas em histórias de ficção fantástica), a Arena de Obsidiana onde ocorre o Festival da Morte, entre outros.
E como este é um mundo novo, existem certas peculiaridades interessantes, como por exemplo a proibição da cor vermelha. Nada em Untherak poderia ser representado por essa cor. As pessoas eram ensinadas a bater na testa três vezes ao verem essa cor a fim de se proteger do “Mal Rubro”. Existe também a Mácula. De acordo com a lenda, a Mácula é o sumo do Sol que a Deusa Una escureceu durante a criação de Untherak. Para os humanos, a Mácula era sentença de morte, mas para Kaorshs, anões e sinfos ocorria o efeito de batismo. Os batizados se tormam criaturas selvagens. Armas também poderiam ser batizadas na Mácula e então passavam a ter dois efeitos sobre suas vítimas: o primeiro, era que o ferimento provindo de uma arma maculada não vertia sangue, já que ela era capaz de cortar e cauterizar preenchendo na mesma hora o ferimento com seu resíduo; o segundo era que os ferimentos não agrediam (tanto) a integridade física da vítima. Ou seja, o método de castigo perfeito.     

“A dor causada por uma arma batizada era singular, pois continuava se fazendo presente por dias sem retirar a integridade física mínima necessária para que o castigado continuasse com suas funções a serviço de Una. Uma punição que não prejudica a produtividade é o sonho de um sistema que depende de esforço e de mão de obra barata – e, caso o servo merecesse uma pena mais definitiva, sempre haveria o banho de Mácula.
*Ordem Vermelha – Filhos da Degradação (pág. 61).

                É interessante notar que, mesmo a história sendo situada em um mundo fictício com suas próprias regras, o autor deu um jeitinho de inserir questões muito presentes na nossa sociedade como, por exemplo, o preconceito, a identidade de gênero e o analfabetismo como forma de controle da massa. Como dito anteriormente, a Kaorsh Raazi tinha uma esposa chamada Yanisha. Nem preciso dizer que grande parte dos homens que topam com as duas fazem todo tipo de gracejo… para se arrependerem amargamente depois. Em dado momento somos apresentados ao personagem  Ziggy, da raça dos Sinfos, raça essa que em geral não se identificavam com um sexo, já que eles eram assexuados e hermafroditas, transitando facilmente entre os dois gênero… ou além. E a habilidade de ler era um benefício concedido apenas ao alto escalão do governo de Una. Obviamente que com isso era muito mais fácil controlar as pessoas. Afinal, o vencedor é aquele que conta a história. Existem muitas outras curiosidades, porém vou deixar para vocês descobrirem.
Tenho só uma ressalva quanto ao desenrolar da história: em determinado momento, os heróis renegados começam a realizar uma série de ataques ao sistema tirânico de Untherak, destruindo pontos sensíveis para o controle da cidade a fim de promover o caos e desmascarar aqueles que estavam por trás de tudo de ruim que acontecia. Senti falta de uma narrativa que mostrasse de forma mais direta as implicações desses ataques, dizendo, por exemplo, o que os manda chuvas de Untherak fizeram para dar o troco, mas apenas depois de cinco meses de ataques que o narrador mostra o tal contra ataque. Sei que é mimimi meu, mas seria interessante ver o desenrolar desses fatos na narrativa.
                Essa foi a minha primeira experiência com o autor Felipe Castilho, este que conheci na Bienal de 2015 e vivo encontrando nas bienais e CCXP da vida. Tenho de dizer que tive uma experiência maravilhosa com o primeiro contato. A história que Felipe (e os cocriadores, não podemos jamais retirar o mérito de cada um) criou é sensacional e serve para exemplificar que nossa literatura fantástica tem muito potencial para conquistar a atenção do leitor de igual para igual com os títulos que vem de fora do país. Tanto é que este livro é uma parceria de seus criadores, da Intrínseca e da CCXP (sim, isso mesmo que você leu). Ordem Vermelha – Filhos da Degradação é o primeiro “produto” oficial do evento e a divulgação em cima dessa obra foi simplesmente monstruosa. Quem esteve no evento sabe bem. Para aqueles que não estiveram presentes, saibam que a Intrínseca montou um Stand temático para a obra e por todo lado tinha banners gigantes promovendo o livro. É ou não é para ficar orgulhoso do trabalho produzido aqui no Brasil?

Que tal esse painel especial para o lançamento da obra na CCXP? Créditos: Mundo Estranho
Vou parar por aqui, porque senão vou me estender demais na resenha e, embora eu tenha muita coisa para contar sobre esse espetacular novo mundo criado por mentes incríveis, vou deixar que vocês, leitores, tirarem suas próprias conclusões. 
A obra é narrada em terceira pessoa e se foca em três núcleos: a de Aelian, a de Raazi e Yanisha e a do espadachim misterioso. Em algum momento da narrativa os dois primeiros núcleos se misturam, enquanto que o último permanece isolado até o final, onde as pontas que ligavam passado, presente e futuro se conectam. E por falar nisso, a história se desenrola de forma linear, mas em certos momentos o narrador volta ao passado para contar fatos marcantes de alguns personagens, principalmente a de Aelian e sua relação com o Festival da Morte. Acontecimentos no futuro também são abordados, narrando o que o misterioso homem encapuzado está planejando ao adentrar em Untherak. E embora Aelian seja o personagem principal, a história não foca apenas nas ações do falcoeiro. Ela abre muito espaço para o rico desenvolvimento de outros personagens que são, assim como ele próprio, peças chave na trama.

Mapas... como eu adoro mapas 


                A revisão está excelente, um errinho ou outro que encontrei. A Intrínseca caprichou demais na diagramação desse livro, com exceção da localização do mapa (imagem acima). Poxa, colocar o mapa no meio do livro foi sacanagem. Pode ser chatisse da minha parte, mas seria mais interessante deixar o mapa próximo do glossário, facilitaria a pesquisa. E por falar nele, obrigado por existir! Sentiu-se confuso com alguma localidade, algum nome? Vai lá no glossário e seja feliz. Só tome MUITO cuidado, pois o deixaram do lado do diabo da última página do livro. Uma espiadinha para o lado e BAMMM, já era (sério, SPOILER daqueles de tirar a sanidade de uma pessoa). A capa é uma maravilha a parte, daquelas que você poderia facilmente comprar sem nem saber do que se trata a história. Ela foi feita pelo ilustrador Rodrigo Bastos Didier. O livro possui um site oficial que vocês podem dar uma espiada pelo link. Lá vocês podem encontrar o mapa e ilustrações dos personagens.
Felipe Castilho descansa da escrita de livros escrevendo roteiros. Autor da série O Legado Folclórico, composta pelos livros “Ouro, Fogo & Megabytes”, “Prata, Terra & Lua Cheia” e “Ferro, Água & Escuridão”, também escreveu “Savana de Pedra”, finalista do Prêmio Jabuti 2017 na categoria História em Quadrinhos. Mora em São Paulo, onde gosta de visitar lugares chiques usando chinelos.
A Ordem Vermelha – Filhos da Degradação é uma obra que fala sobre escolhas e suas consequências. Sobre viver na sombra da ignorância ou resistir à opressão. Sobre perdas e vitórias. Sobre confiança e traição. Sobre segredos enterrados e verdades terríveis. E principalmente sobre esperança de um futuro melhor. Uma obra de fantasia nacional que eu recomendo fortemente aos fãs do gênero. Existem muitos elementos interessantes que podem encher os olhos dos leitores. Além de ser um livro muito bem escrito, cheio de cenas fortes, personagens carismáticos, batalhas intensas e reviravoltas de cair o queixo, existe todo um universo novo que poderia muito bem migrar para outras mídias (como jogos de RPG, Action Figures, Card Game…). Se você também é fã de leituras que falam sobre mundos distópicos e regentes tiranos, esse livro é uma ótima pedida.
E vou deixar aquela recomendação que sempre faço quando resenho nacionais: apoie a produção de obras nacionais. Nem precisa ser só de fantasia, mas como um todo. Tem muita gente fera por aí que merece estar na sua estante. E o Felipe com certeza é um deles.
O livro terá uma continuação. Há muitas pontas soltas ainda para serem explicadas, muito material introduzido nesse volume que pode ser ampliado no próximo. E só de lembrar daquele final...
Maldito final.
Daqueles que você quer tacar o livro pela janela, mas só porque não têm o segundo volume em mãos.
Maldito Castilho.
Todo sucesso do mundo para você! HAHAHA


Bibliografia de NOME DO AUTOR (ordem cronológica):


Livros:
  • Ouro, Fogo & Megabytes – Gutenburg (2012).
  • Prata Terra & Lua Cheia – Gutenburg (2013).
  • Ferro, Água & Escuridão – Gutenburg (2015).
  • Savana de Pedra – Editora Alto Astral (2017).
  • Ordem Vermelha - Filhos da Degradação – Editora (2017).



Luciano Vellasco

Sou o cara que brinca de ser escritor e se diverte em ser leitor. Apaixonado por livros, fotografia e escrever. Jogador de rpg nos domingos livres, colecionador de Action Figures e Edições Limitadas de jogos. Cinéfilo, amante de series e animes. Estou sempre em busca de conhecer novas pessoas e aprender com cada uma delas e por último, mas não menos importante: um lendário sonhador.
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