CONTO - Carga Preciosa



Título: Carga Preciosa
Classificação: + 16
Gênero: Suspense/Terror.
Sinopse: Um homem escapa de um grave acidente de carro, mas terá a maior provação de sua vida para tentar salvar seu bem mais precioso.
Observação: Esse conto é uma adaptação escrita do Curta-Metragem "Cargo".


Carga Preciosa

Clique para ler os atos.

Ato I


         Minha cabeça zumbia e rodopiava como se estivesse em um loop infinito de uma montanha Russa desgovernada. Um líquido quente deslizava por minha cabeça e não precisava de mais informações para saber que havia um corte ali. Coloquei a mão no ferimento, não parecia ser um corte profundo, mas estava doendo muito. Ouvi um sussurro, algo semelhante a um gemido baixo, minha mente voltava a funcionar à medida que minha visão clareava. Havia um borrão se movendo lentamente ao meu lado, mexia a cabeça de um lado para o outro e grunhia como...
            Meu Deus!
            Com olhos esbugalhados eu vislumbrei a mulher que eu tanto amava... Não, a mulher que eu tanto amei. Ela estava morta, mas ainda assim se mexia e aos poucos se aproximava de mim. Seus olhos leitosos e sem vida me fitavam com frenesi, as veias negras eram visíveis por todo o corpo putrefato e um hematoma enorme em sua testa completava a visão terrível que era aquela coisa. A coisa (que antes foi minha esposa) levantou os braços na tentativa de me capturar, porém, para a minha sorte, o cinto de segurança a prendia firmemente contra o banco, impedindo-a de me pegar. Abençoado seja o sistema que travava o cinco por conta de puxadas bruscas, mas não podia contar com aquilo para sempre. Logo ele cederia. Minha mente gritava para sair dali imediatamente. Estava tão assustado que demorei séculos para apertar o botão que me liberaria do cinto de segurança, minhas mãos tremiam descontroladamente! O cinto dela afrouxou e suas mãos mortas me alcançaram. Iniciei uma luta corporal desesperada pela minha vida enquanto ela tentava me morder. Finalmente consegui me livrar da pegada e abri a porta do carro. Sai rolando descontroladamente pelo chão e parei a mais de três metros do carro. Lágrimas teimavam em escorrer pelo meu rosto. Minha mulher se tornou um deles! Meu Deus, por quê? Quando ela havia sido mordida? Será que aquele infectado que ela matou na loja de conveniência a mordeu? Porque ela não me contou? Porque eu a deixei dirigir?
            Essas e tantas outras perguntas inundaram minha mente em segundos, mas não era hora para nada disso. Levantei-me rapidamente e avancei para a porta de trás do carro. A coisa acompanhava meu andar com as mãos erguidas e aquele grunhido, querendo me pegar de qualquer jeito. Tentei abrir a porta, mas estava travada por dentro. Por um segundo me veio à ideia de quebrar o vidro com um soco. Estava desesperado e temos ideias estúpidas quando ficamos desesperados. Antes de arrebentar minha mão com o vidro dei a volta e, para a minha alegria, a outra porta estava aberta. A coisa virou como pode na minha direção e tentou me pegar. Controlando tristeza, medo e raiva com a visão a minha frente, entrei no banco de trás e retirei de lá o bem mais precioso de minha vida.

Ato II


                Minha mulher morreu.
            Olhava para o nada. Minha mente, agora menos acelerada, processou o que havia acontecido. Dirigíamos rumo a oeste. Diziam haver uma área segura por lá, em uma cidade próxima a uma base militar, livre da infestação, livre dessas coisas. Pegamos nosso carro, nossos pertences e partimos. Fui eu que insisti. E agora estou pagando pelos meus atos. Minha mulher ia ao volante, pois eu estava muito cansado. Dormi por algumas horas e acordei no susto. O carro saiu da pista, acho que ela perdeu o controle ao ver algo na estrada. Batemos de frente com uma árvore.  
              Por vontade de Deus ela não estava ferida. Minha preciosa. Minha Mariana. Minha pequena filha de apenas sete meses dormia tranquilamente, alheia a tudo o que acontecia. Retire-a do carro e ela acordou morosa, me olhando com aquele lindo sorriso sem dentes e aqueles olhos castanhos herdados de sua mãe. Retirei a cadeirinha que havia salvado a vida de minha filha e a coloquei confortavelmente sentada embaixo de uma árvore, a poucos metros de onde o carro bateu. Certifiquei-me de que estávamos sozinhos e voltei para o carro. Aquilo tinha de ser feito. Não podia deixar minha mulher naquele estado. Ela não merecia, ninguém merecia. Apanhei uma barra de ferro do banco de trás, a arma mais forte que tinha a minha disposição. Outro erro. Devíamos ter pegado armas ao invés de álbuns de fotografia... Dei a volta e fiquei de frente para a porta do motorista. Com o corpo inteiro tremendo em espasmos horríveis, eu a abri. A coisa me recebeu com grunhidos. Ela não conseguia se livrar do cinto de segurança. Apenas um botão a separava de me pegar. Se a coisa fosse só um pouco mais inteligente, estaria morto agora. Ergui a barra de ferro e me preparei...
  Minha mente viajava pelo passado. Quando nos conhecemos, ainda na faculdade. Ela, inteligente, estudiosa, meiga e gentil. Eu, um completo tímido e destrambelhado. Até hoje não entendo bem o que ela viu em mim. Dizia que eu tinha algo especial, algo que apenas poucos hoje em dia ainda têm. Não sei bem o que isso significa. Casamos-nos, fomos felizes por muitos anos e tivemos uma filha linda. E agora estou de frente para a coisa que um dia foi minha mulher, prestes a acertar uma barra de ferro contra a sua cabeça. Nunca entenderei o que ela via de especial em mim...
            Por quê? Porque isso tinha de acontecer? Porque não me levaram no lugar dela? A raiva inflou minha coragem. Aquele era o meu ato de misericórdia e amor.
               Eu te amo.
            A barra desceu e acertou o topo de sua cabeça, mas não havia sido o suficiente, a coisa ainda se mexia lentamente, desferi mais um e outro e outro, até que finalmente ela parou de se mexer. Minha roupa estava empapada de sangue. Com lágrima nos olhos eu observava minha amada ali no banco do carro, imóvel, com o crânio arruinado.
            Então escutei um gemido diferente e logo em seguida, um choro. Minha filha começou a chorar e rapidamente larguei a barra de ferro e o cadáver da minha mulher para socorrê-la. Peguei-a no colo e fiz caretas e a girei de um lado para o outro, do jeito que ela gostava. Ela sorriu e eu me acalmei.
            Foi então que eu vi e meu mundo ruiu de vez.
            Havia um corte em meu braço. Será que foi do acidente? Não, não tinha porque eu me enganar desse jeito. Eu estava infectado, tinha certeza absoluta disso. E se eu estava infectado, minha pequena corria perigo. Precisava encontrar ajuda, antes que o pior acontecesse. Rapidamente entrei no carro e apanhei do porta-luvas um mapa e uma caneta. Estava a muitos quilômetros de uma cidade e o carro estava com a frente destruída, teria de fazer algum trajeto a pé com o pouco tempo que me restava.
            Decidi seguir para o norte. Havia fazendas naquela região, talvez ainda encontra-se alguém com vida por lá. Enquanto analisava o mapa minha filha brincava alegremente com um chocalho. Ela sorria com o som e eu sorria para ela. Ela não merecia o que estava por vir. Precisava encontrar um local seguro o quanto antes. Apanhei alguns poucos suprimentos, a cadeirinha e a prendi firmemente nas minhas costas, assim teria as mãos livres para enfrentar qualquer perigo e me pus a correr.

Ato III


             Escolhi um caminho muito idiota para seguir em frente. O terreno era íngreme e por muitas vezes tive de escalar para continuar o percurso. Mudar a rota não era uma opção naquela altura. Meu corpo já mostrava os primeiros sinais da infecção. Aos poucos estava ficando febril e o cansaço só piorava a situação. Ao menos, a pequena Mariana estava curtindo o passeio, vez ou outra tentava com sua mãozinha capturar galhos e folhas das quais eu dava duro para afastar de nossos rostos.
            As horas passavam e nada de civilização. Aquela floresta parecia interminável. Meu suprimento de água estava quase no fim e minha filha já demonstrava estar com fome. Há poucos minutos ela começou a chorar, mas eu não podia parar, sabia disso, seria pior para ela. Mariana tinha de ser forte e suportar essa provação.
            Ouvi um grunhido e todos os pelos de meu corpo se eriçaram. Olhei para todos os lados para identificar de onde vinha o som. Galhos se partiram denunciando para mim a localização do barulho. Era um deles que se aproximava de mim. Um jovem de uns quinze anos ou menos. Usava camisa listrada e calça jeans, ambos já desbotados pelo tempo. Tinha perdido um dos calçados e usava no outro uma bota. Havia a marca de uma enorme mordida em sua bochecha direita. O ferimento era tão grotesco que dava para ver parte de sua arcada dentaria.
            Mariana continuava a chorar e a coisa continuava a avançar na minha direção. Qualquer movimento errado e seria o nosso fim. A barra de ferro estava novamente em minha mão. Com cuidado subi uma pequena elevação de terra e esperei ele se aproximar mais. Essas coisas eram lerdas e burras, não possuíam qualquer senso de direção, noção ou perigo, até que foi simples trazê-la para a minha armadilha. Por conta da elevação, ele acabou parando por uns instantes ― sua mente parecia não entender que bastava erguer uma perna para conseguir subir ―, apenas estendendo suas mãos podres para tentar me pegar. Dei o primeiro golpe na vertical, acertando em cheio o lado do rosto avariado. Ele caiu no chão como uma árvore que tem sua base cortada, mas ainda não havia desfalecido. Ele aos poucos tornava a se levantar, mas eu não permitiria que isso acontecesse. Desci a elevação e voltei a golpeá-lo na cabeça ao som dos protestos de minha pequena. Tomei cuidado para não deixar sangue espirrar em Mariana, uma simples gota poderia ser fatal para ela. Depois de me certificar com pontapés que a coisa estava morta, uma ideia me veio à mente. Uma ideia que talvez fosse à chave para a salvação de minha garota.
            Retirei o peso que era Mariana de minhas costas e há deixei um pouco afastada de mim, ela brincava freneticamente com o seu chocalhinho, por vezes mordiscando o brinquedo. Nem dente tinha, mas já estava aprendendo a se virar com o que dava. Com certeza ela no futuro será uma mulher guerreira. Esperei por uns dois minutos, para ter certeza de que não havia mais nenhum deles por perto e fui executar o trabalho de açougueiro. Com uma pequena faca de cozinha na mão, debrucei-me sobre o corpo moribundo, não conseguia segurar a expressão de repugnância que eu sentia por aquela coisa. Seu nível de deterioração era terrível. O cheiro de morte entrava pelas minhas narinas me fazendo sentir ânsia de vômito antes mesmo de começar a cortá-lo. Respirei fundo, levantei a arma acima de minha cabeça e desci com força sobre o estômago dele. Sem pensar continue a rasgá-lo, cortes sem qualquer perícia, sem qualquer habilidade. Perfurava e rasgava. Sangue negro e viscoso espirrava para fora, segurei o fôlego, pois a cada nova facada, o fedor aumentava. Havia vestígios de carne no estômago dele, até mesmo um pedaço de pano que eu imaginava ser um pedaço de uma camisa encontrei lá dentro. Pronto. Estava aberto o suficiente. Agora vinha a parte nojenta de minha investida. Com as mãos abri mais o buraco... que nojo... era tão viscoso e grudento que faria uma lesma parecer rocha, ainda bem que fazia horas que eu não comia, não havia nada para sair de mim naquele momento. Não teria sido uma visão agradável visualizar todo aquele sangue preto misturado a minha bile. A todo o momento eu pensava no porque estava fazendo aquilo, precisava daquela força para continuar. Resistindo ao horror finalmente consegui retirar pedaços suficientes dele, coloquei tudo em um saco plástico e amarrei a cintura. Hora de seguir em frente.

Ato IV


         Deus, meu corpo está dolorido. Minhas costas doem, minhas pernas doem e minha cabeça está para explodir. Estava tão debilitado que tive de improvisar uma bengala com madeira para apoiar o peso do meu corpo na subida. Sinto a contaminação avançando dentro de mim. Já posso visualizar pequenas chagas pelo meu corpo que aumentavam gradativamente. Estava ficando sem tempo. Depois de mais algumas horas de dura caminhada eu encontrei uma pequena estrada de terra, o suficiente para passar um carro. Meu corpo animou-se novamente. Poderia achar ajuda. Apertei o passo e logo encontrei a porteira de uma pequena fazenda. Entrei apressadamente no terreno e logo gritei por ajuda e minha filha ao modo dela ― com seu choro ― também pedia por ajuda. Mas não encontramos nada. Janelas e portas lacradas com madeira e qualquer outra coisa que servia como barricada. Bati na porta da frente na esperança que alguém estive escondido por lá, mas não obtive qualquer resposta. Já pensava em um plano para arrombar a casa quando um forte barulho do outro lado fez meu coração voar na boca e voltar. Este foi seguido de outro igualmente forte e outro e outro. Instintivamente me afastei da porta e escutei os gemidos... havia um infectado lá dentro. Merda. Dei a volta, mas nada havia além de cadeiras de madeira e redes. Mariana continuava a chorar. Aquilo me cortou tanto o coração que eu parei por cinco minutos para acalmá-la. Sabia que estava sendo negligente, mas me doía ver minha pequena sofrendo. Lembrei que na mochila havia um mordedor. Creio que ela ficaria mais contente ao morder algo que foi projetado para isso.
            Não tinha jeito com ela. Mal sabia preparar sua papinha e muito menos trocar sua fralda, mas graças a Deus ela parou de chorar. Que falta minha esposa fazia. Ela sabia como criá-la. Com aquele jeito meigo e carinhoso dela. Sabia exatamente o que a nossa filha queria, apenas observando sua expressão. Ela havia me dito uma vez que os bebês se comunicavam conosco através do choro. Se algo estava errado, choravam, se estavam com fome, choraram, se queriam atenção, choravam. Infelizmente eu não sabia o que minha filha queria. Com toda certeza estava com fome, mas parecia ter deixado a vontade de lado ao por na boca seu pequeno mordedor em forma de mãozinha.
            Minha cabeça funcionava a mil. Precisa de uma solução urgente. Entrar na casa não era uma opção. Fraco do jeito que eu estava seria alvo fácil e eu não tinha ideia de quantos deles havia na casa. O mais prudente seria continuar andando e aguentar o tranco. Era isso ou nos dois morreríamos. Coloquei minha filha confortavelmente de volta em minhas costas e voltei a caminhar. Deveria haver outras fazendas como está na região. Tinha de haver.
Papai te ama filhinha, ele vai encontrar uma forma de te manter segura. É uma promessa.   

Ato V

            Meu nome...
            Não me lembro. O que eu estou fazendo? Andando a esmo por este campo verdejante? Meu corpo está pesado. Parece que carrego uma pedra em minhas costas. Preciso tirar esse peso extra...
            Não!
            Meu Deus, o que eu estou fazendo? Minha filha está em minhas costas e não uma maldita pedra! Estou ficando louco? Onde eu estou? Ah, maldita vegetação. Finalmente consegui me livrar da floresta e agora estou cortando o mato alto. Por quanto tempo eu andei sem perceber? Minha visão está turva por algum motivo estranho. As chagas em meu corpo estão ficando assustadoramente maiores. Sinto uma ardência enorme no meio peito que dói como o inferno. Mariana parecia ter ganhado muitos quilos em poucos minutos. Parecia pesar o triplo de poucas horas atrás. Deus! Não encontrei nada. Nenhuma misera construção. Estou tão longe assim da civilização? E que fome é essa? Um bife bem suculento viria a calhar... Sacudi a cabeça violentamente. Como podia pensar em carne em uma hora dessas? Minha visão pareceu obedecer ao sacolejo e voltou. Nada além de mato no horizonte. Filha... papai está tão cansado... queria poder cochilar um pouco, descansar...
            Não!
           Precisava continuar até o fim! Precisava seguir em frente. Só mais um pouco. Por favor, corpo, peço só mais algumas horas! Não me deixe na mão agora! Olhei para o horizonte e consegui divisar o que parecia ser uma construção. Estava ficando louco? Alucinando coisas? Agorinha a pouco não havia nada e agora consigo ver o contorno do que parecia ser uma pequena torre de observação. Precisava chegar lá o quanto antes, minha filha não poderia mais ficar comigo. Não do jeito que eu me encontrava. De repente minhas pernas ficaram bambas como duas varetas açoitadas pelo vento, não conseguia mais resistir ao peso de meu próprio corpo e acabei caindo de joelhos em meio à grama que me cercava.
            Droga!
            Esse não podia ser o nosso fim. Não era justo. Ela precisava sobreviver. Que merda de pai eu sou por não garantir isso? Só de pensar que logo irei virar um inimigo para minha filha. Que ela não poderá se defender, que eu vou mordê-la...
            Gritei. Esgoelei. Minha última cartada. Alguém, em algum lugar poderia ouvir minhas suplicas, mas os minutos se passaram e nada. Não tinha mais força para levantar. Comecei a esmurrar o chão com raiva, agarrava o mato e o retirava da terra. Minha mente não estava trabalhando direito, não conseguia pensar em mais nada para fazer e num acesso de fúria bati minha testa contra o chão. Depois da dor... veio a luz. Olhava para o saco plástico de ponta cabeça. É claro! Tinha me esquecido disso! Como pude ser tão imbecil? Tive essa ideia há nem cinco horas atrás e já havia me esquecido dela. Tinha de ser rápido, já sentia um formigamento na mão, logo ela pararia de funcionar como aconteceu com minhas pernas. Retirei os cadarços de meu sapato e comecei a executar meu último e derradeiro esforço de salvar minha pequena.


            Eu prometi protegê-la filhinha... Eu sei que prometi, mas vou ter de quebrar essa promessa. Eu sinto muito. Papai não conseguiu ser forte o suficiente para resistir a essa praga. Eu queria vê-la crescer, eu queria poder ver você dar os seus primeiros passos, queria poder cantar canções de ninar, queria contar a você como sua mãe era maravilhosa. Mas não poderei. Sobreviventes irão encontrá-la, eu sei que vão. E você vai viver com eles e será uma boa moça. Sobreviva meu amor. Seja forte por você e por seus pais que tanto te amam. Queria poder te abraçar agora, te dar um beijo, mas já não é mais possível. Não há tempo para um último adeus. Não consigo mais me lembrar do seu rosto, mas sei que você é uma criança linda e que com certeza puxou a sua mãe. Vou ficar aqui, imóvel, o tempo que conseguir. Por favor, tente não fazer muito barulho, ok? É só por algum tempo. Meus olhos pesam e sinto que vou dormir agora e quando eu acordar novamente, não serei mais o mesmo. Rezo para que você nunca me veja neste estado. Tenho esperanças de que alguém, em algum lugar me livre dessa maldição e me ajude a encontrar sua mãe lá no céu. E de lá que vamos te vigiar e é de lá que vamos te amar. Finalmente, depois de tantos anos entendi por que sua mãe me considerava especial.
Adeus filhinha.
            Papai te ama muito.

Epílogo


           Danilo sempre deu graças a Deus por morar em uma fazenda de terreno elevado. Os poucos sobreviventes de sua família e alguns amigos haviam montado um lar relativamente seguro naquelas terras. Quase totalmente rodeada por vegetação alta e cheia de terrenos íngremes e de difícil acesso, ele e outros sobreviventes tentavam tocar a vida para frente na medida do possível. Claro que sempre aparecia um desgarrado vindo não se sabe de onde. No mundo dos infectados, todo cuidado, atenção e vigia era pouco e por isso sempre havia alguém para tomar conta das coisas por ali e dessa vez, era ele quem estava no ponto mais alto do terreno, no alto de uma construção que era usada antigamente para instalar uma antena receptora de TV, vigiando, alerta para tudo que se mexia.
            - Como está às coisas ai, Danilo? – perguntou um homem magro, vinte e cinco anos, cabelos castanhos e olhar assustado do andar debaixo.
            - Tudo está tranquilo por aqui, Pedro – Danilo respondeu. Além do binóculo, ele estava armado com uma carabina de caça, capaz de acertar um alvo a quase duzentos metros de distancia.
            - Certo – seu olhar parecia ganhar um tom mais vivido com a resposta – Sua irmã está preparando o almoço cara, vê se relaxa um pouco e vamos comer uma galinha no capricho! – exclamou Pedro.
            - Me dê cinco minutos – replicou Danilo. – Eu já... – ele estacou de repente, seu binóculo preso em um ponto fixo. Havia um deles caminhando desengonçadamente pelo terreno que eles usavam para enterrar seus entes queridos, seu pai inclusive, estava enterrado lá. – Tem um deles se aproximando!
            - Apenas um? – Pedro gelou. Rezava mentalmente para que fosse apenas um. Na única vez que topou com um deles, quase foi mordido e a visão da criatura assombrava seus pesadelos diariamente. Queria ele ter a coragem de Danilo.
            - Sim, apenas um. Vou abatê-lo. Chame Carlos e Aline e recolham o corpo – ele ordenou e Pedro saiu em disparada à casa principal para alertar os outros.
            Danilo fez mira. Era um homem. Trinta anos talvez. Não havia sinais aparentes de mordida, mas o andar descompassado já era mais que suficiente para ter certeza de que se tratava de um deles. Com um misto de duvida e espanto, ele visualizou através do visor da carabina que havia um pedaço de pau pendurado em seu ombro e um saco na ponta contendo o que parecia ser... carne. Algum pedaço de alguém, ou mesmo das entranhas de alguém, difícil dizer, também notou que as mãos estavam atadas pelo que parecia ser um cadarço de tênis... Porque um infectado teria suas mãos amarradas e carregava aquele saco de carne? Quem havia feito isso com ele e por quê? A incógnita era tanta que ele demorou demasiadamente para apertar o gatilho. Quando o fez, parecia que havia atirado com um canhão devido ao silêncio sepulcral que se instalara pela região e além. A bala entrou pelo lado superior esquerdo do crânio do infectado e saiu pelo outro lado, quase que imediatamente, ele caiu de joelhos e logo em seguida, foi ao chão. Danilo rapidamente desceu as escadas e encontrou seus amigos Carlos e Aline no meio do caminho. Ambos levavam uma pá, afim de já enterrar o morto. O grupo já havia debatido sobre queima-los, para não contaminar o solo, mas descartaram a hipótese, pois a fumaça facilmente denunciaria a posição deles, então demarcaram um território apenas para esse tipo de tarefa, as plantações, celeiro dos animais e o pequeno córrego que cortava a fazenda ficava do outro lado, de modo que eles não corriam riscos de contaminação.
            - Um tiro bem dado – comentou Danilo ao olhar o buraco do tamanho de uma moeda de um real que havia se formado no local onde a bala entrou. O corpo caiu de frente para o trio.
            - Está ficando cada vez melhor – elogiou Carlos. – Mas temo que seus dias de atirar estejam quase no fim. Quantas balas ainda lhe restam?
            - Apenas cinco.
            - Então aconselho você a guarda-las para uma emergência – Carlos tocou de leve ombro de Danilo. – Vamos cavar.
            - Ok. – Ele pediu a pá para Aline e foi ao encontro de Carlos que já desferia golpes na grama.
            A garota ficou ali olhando para o morto também intrigada com o fato dele estar com as mãos atadas e com um saco de carne amarrado em um pedaço de pau. Era como se alguém estivesse guiando a criatura, mas por qual motivo? Chegou bem próxima a ele e analisou a situação, sem chegar a qualquer conclusão. Os olhos leitosos e sem vida ainda estavam abertos e por um momento ela ficou ali encarando aquele olhar de morte e se desligou do mundo.
              “Qual é a sua história?”, pensou consigo mesma.
               - Aline – chamou Carlos e ela quase caiu para trás de susto. – Venha.
               - Já estou indo – levantou-se e girou nos calcanhares, deu alguns passos.
                E ouviu um choro.
                 De bebê.
            Aline arregalou os olhos e estacou por um momento. “Estou ouvindo coisas?”. Ela virou-se novamente para o cadáver e ouviu mais uma vez a lamúria de um bebê. Correu desesperadamente até o morto, o virou e a surpresa foi enorme. Havia uma criança confortavelmente sentada numa daquelas cadeirinhas de colocar no carro. Ela não havia visto antes, pois o corpo estava por cima. Ela desamarrou a criança do cinto que a prendia e a pegou no colo.
            - Meu deus... – seus olhos encheram de lágrimas, aquilo era um verdadeiro milagre. – Ei, pequena! Ei – ela começou a fazer caretas para a menina enquanto as lágrimas teimavam em descer pelo rosto.
            Carlos e Danilo pararam o que estavam fazendo quando ouviram o choro da criança. Estavam embasbacados. Ambos correram ao encontro de Aline para vê-la mais de perto.
            - Onde você a encontrou? – perguntou Danilo.
            - Ela estava amarrada as costas dele... Danilo... olha como ela é linda!
            - As amarras, a carne... Agora faz sentido. Ele estava protegendo a menina de si mesmo! Meu Deus, eu poderia tê-la matado com o tiro...
            - Mas não a matou. Aquele homem salvou a vida dela – afirmou Aline.
            - Que nome vai dar a ela? – perguntou Carlos.
            - Tem algo escrito no bracinho dela – comentou Danilo observando o conteúdo que estava meio escondido sob a blusa da menina.
            “Meu nome é Mariana”.
            - Mariana... que nome lindo você tem. Não é?
            A criança sorriu para os estranhos.
           

            Os dois homens voltaram a cavar, mas desta vez, não escavavam apenas para enterrar um cadáver qualquer. Estavam enterrando o homem como se fosse um membro daquele grupo. Cada vez que tiravam a terra, uma memória de suas próprias vidas inundavam seus pensamentos. Do que fizeram e como fizeram para sobreviver até aquele dia. Algumas dessas memórias não eram boas e com certeza assombrariam por muitas noites seus protagonistas, outras, poderiam ser contadas a mesa como fábulas heroicas e outras ainda como provas de que esperança e amor sobrevivem em meio ao caos. Entretanto, nenhuma, jamais deixaria aquém a história daquele desconhecido. Enterravam um herói, um exemplo a ser seguido por todos ali.      
O mundo estava acabando, as pessoas estavam morrendo, os mortos se levantavam e avançavam sobre os vivos, estes tentavam sobreviver, passavam por cima de sua própria gente para continuar a viver, mas aquela garotinha e aquele pai viraram símbolos, de que mesmo no apocalipse, ainda há esperança.
Todos foram chamados e a história do desconhecido e da pequena Mariana foi contada. De como um pai deu sua vida por uma chance e de como ela, sozinha, sobreviveu ao apocalipse zumbi.


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Autor: Luciano Vellasco

Idade: 24 anos

Localidade: Brasília

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Luciano Vellasco

Sou o cara que brinca de ser escritor e se diverte em ser leitor. Apaixonado por livros, fotografia e escrever. Jogador de rpg nos domingos livres, colecionador de Action Figures e Edições Limitadas de jogos. Cinéfilo, amante de series e animes. Estou sempre em busca de conhecer novas pessoas e aprender com cada uma delas e por último, mas não menos importante: um lendário sonhador.
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Comentários
5 Comentários

5 comentários :

  1. Como posso dizer? hã..... MESTRE! kk ^^ Como sempre Luciano, seus contos são fantásticos. Parabéns... Deve um livro eim! Vou ser a primeira a comprar pode crer *-*

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  2. Já havia visto o curta e como já te disso classifico ele como um dos melhores que já fizeram e o conto ficou maravilhoso *o*.
    Ficou muito bom mesmo, você conseguiu fazer com que nos colocássemos no lugar do personagem principal, show *-*

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  3. Sabe que acho esse curta maravilhoso, né? Foi umas das dramatizações mais interessantes e emocionantes de um apocalipse zumbi.
    Quando vc me mostrou esse conto, achei igualmente maravilhoso. Meus parabéns!!!!!!

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