Referência bibliográfica: TAHAN, Malba.
O
Homem que Calculava. 58ª edição. Rio de Janeiro, Editora Record, 2002. 300
páginas.
Gênero: Literatura paradidática; infanto-juvenil
Temas: Matemática;
Categoria: Literatura brasileira;
Ano de lançamento: 1938
“Às vezes punha-se várias horas, em silêncio, num silêncio maníaco, a
meditar sobre cálculos prodigiosos. Nessas ocasiões esforçava-me por não o
perturbar. Deixava-o sossegado, a fim de que ele pudesse fazer, com os recursos
de sua memória privilegiada, descobertas retumbantes nos misteriosos arcanos da
Matemática, a ciência que os árabes tanto cultivaram e engrandeceram.”
*O Homem que Calculava (pág. 20).
Todo bibliófilo tem sua vida
dividida em antes e depois de determinado livro. Aquela obra que desperta em
nós uma vontade louca de sair por aí lendo livrarias inteiras. Justiça seja
feita: desde que me entendo por gente, meus pais sempre me incentivaram a ler.
No entanto, devo confessar que nem sempre fui tão fissurado em literatura.
Quando eu era moleque, tinha outros interesses que dividiam minha atenção, então
a leitura era apenas mais um entre vários passatempos. Eu curtia, mas ainda não
era tarado apaixonado por ela. E O
Homem que Calculava mudou isso. Mas o que esse livro tem de tão especial?
Trata-se da estória de Beremiz
Samir, um pastor persa que, de tanto contar as ovelhas de seu rico senhor,
adquire gradualmente a habilidade de calcular o rebanho inteiro num relance.
Daí ele passa a exercitar sua arte contando outros tipos de animais, como aves,
formigas e abelhas. Impressionado, seu amo resolve encarregá-lo de contar as
tâmaras de suas plantações, onde Beremiz passa dez anos trabalhando. Após esse
período, o protagonista decide aproveitar alguns meses de folga para visitar parentes em Bagdá. E é essa jornada que ocupa a maior parte da
narrativa.
Na estrada ele encontra um bagdali
que está voltando da cidade de Samarra e consegue uma carona em seu camelo.
Sim, até então Beremiz estava viajando a pé. Essa gentileza inicia uma grande
amizade, que se fortalece cada vez mais com o passar do tempo. No caminho os
dois amigos se deparam com várias situações problemáticas, geralmente
envolvendo relações comerciais entre outras pessoas, que o protagonista acaba
mediando com suas habilidades. E a cada querela desfeita, ele consegue em troca
alguma coisa de seus... clientes, por assim dizer. Assim, aquele simples pastor
vai aos poucos se transformando em um dos homens mais importantes e
prestigiados de Bagdá.
O Homem que Calculava é um clássico da literatura paradidática,
gênero de livro escrito especialmente para ajudar o professor a ensinar determinadas matérias. Mas não se engane! Essa obra é muito mais do que uma longa
sequência de problemas matemáticos. A ascensão de Beremiz lembra um pouco os
jogos de RPG. Se
Gandhi, lendo Tolkien, tivesse pensado em criar um RPG, ele teria feito uma
ressalva: “Porém meu jogo não terá tanto sangue”. E o resultado seria
provavelmente algo parecido com o mundo criado por Malba Tahan. Não que o livro
não tenha violência. Ele tem, mas não é uma daquelas aventuras cheias de tiros,
porradas e bombas, porque o foco é a matemática.
O que o autor faz é inserir vários
daqueles problemas que víamos na escola dentro de um contexto maior, de modo
que eles se tornam parte de uma estória. Essa foi a maneira que ele encontrou de
ensinar um pouco de matemática de maneira lúdica. Então mesmo os leitores que
não gostam muito de exatas acabam curtindo, porque todos aqueles números vêm
"cobertos de chocolate", e você não se sente numa sala de aula.
Mas de que é feito esse chocolate?
Bom, esse livro tem tantos atrativos que mal sei por onde começar. Talvez pelo
cenário. Como Malba Tahan optou por ambientar essa obra-prima no Oriente Médio,
o leitor ocidental é transportado para uma cultura bem diferente. Isso dá ao
livro um sabor exótico que sempre me encantou. Grande parte da minha admiração
pelos árabes, persas, hindus etc. vem dessa viagem. E apesar de todas as
diferenças, nós nos identificamos com seus personagens, porque somos todos
seres humanos, e muitas vezes passamos por situações parecidas.
Outro ingrediente é a imensa
quantidade de informações, não apenas sobre os números, mas também sobre essas
outras culturas. O Homem que Calculava
é um livro riquíssimo em conhecimentos, lendas e curiosidades fascinantes.
Quando terminei essa leitura, não pude deixar de pensar: “Uallah! Como alguém
pode escrever uma coisa tão maravilhosa? E quantos outros tesouros como esse estão
guardados nas bibliotecas, só aguardando o próximo leitor?” Eu queria aprender ainda mais. Quando dei por mim,
tinha uma longa cauda e uma vontade louca de comer queijo... e de ler livros...
nunca mais voltei à minha forma humana.
Uma coisa que pode não agradar
todo mundo é o estilo do autor. Não que ele escreva mal. Muito pelo contrário! Sua
escrita é impecável. A narrativa é fluida e o texto bem acessível. Obviamente o
exotismo do cenário obriga Malba Tahan a usar palavras igualmente esquisitas com
alguma frequência, mas as notas de rodapé estão sempre ali para nos ajudar
nesses momentos. O que pode incomodar alguns leitores é o caráter altamente moralizante
da estória. Mais tarde, ao conhecer outros trabalhos do mesmo autor, percebi
que essa é uma preocupação constante em sua obra. Como nas fábulas que ouvíamos
quando éramos pequenos, os livros dele estão repletos de lições de moral, porque ele não quer ensinar somente conteúdos. Então ele faz de Beremiz Samir um
mestre não apenas em matemática, mas também na vida.
A despeito de sua habilidade
excepcional, que lhe permite fazer cálculos astronômicos de cabeça, o
protagonista é um cabra muito humilde, bondoso e generoso do início ao fim. E
mesmo usando esse dom sempre para ajudar os outros, jamais fazendo mal algum a
quem quer que seja, sua reputação acaba despertando a inveja alheia. No
entanto, ele está cagando e andando não está nem aí para esse tipo de
coisa. Ele só quer estudar, ensinar e resolver conflitos. Beremiz é o que os
críticos literários chamam de personagem plano ou estático, porque seu
comportamento nunca muda. E isso pode ser outro problema para alguns leitores,
porque torna o herói um tanto previsível. Malba Tahan poderia muito bem ensinar
suas lições de moral com personagens redondos, mais complexos e realistas. Se
Beremiz fosse mais imaturo no começo, talvez fosse mais interessante acompanhar
seu crescimento ao longo da jornada. Mas ele já começa um sábio, e sua única evolução
visível é a material. O pouco que sabemos sobre sua juventude é o que já falei
no começo da resenha.
Outro defeito: às vezes o
protagonista dá soluções bizarras e absurdamente contra-intuitivas para alguns
problemas, como quando lhe pedem para contar os camelos de uma cáfila. Ao invés
de contar as cabeças, como qualquer pessoa normal faria, ele conta as pernas,
as orelhas, soma um (sim, porque ele nota que um dos camelos perdeu uma orelha)
e divide tudo por seis, só “para tornar mais interessante o problema” (p. 39). E, em se tratando de literatura paradidática, isso é ainda
mais grave, pois esse gênero requer mais clareza nas explicações. Não é legal quando Beremiz Samir torna um problema mais complicado do que ele realmente é. Todavia esses
casos são exceções, e não chegam a estragar o livro. Normalmente os problemas
e as soluções são bem legais, a ponto de você se perguntar em alguns momentos que bruxaria é aquela. Daí você volta um pouco para reler alguns parágrafos, refazendo os passos do cara, e percebe que você não leu errado. Por incrível que pareça, é aquilo mesmo.
Malba Tahan é o pseudônimo de
Julio Cesar de Mello e Souza, um professor brasileiro de matemática. Segundo a
página oficial do autor na internet, ele nasceu no Rio de Janeiro no dia 6 de
maio de 1895, mas passou sua infância em Queluz (SP). Formou-se como professor
pela Escola Normal e depois engenheiro pela Escola Nacional de Engenharia.
Lecionou no Colégio Pedro II, na Escola Normal e na Faculdade de Arquitetura da
Universidade Federal do Rio de Janeiro. Teve três filhos com sua esposa Nair
Marques da Costa. Faleceu em Recife no dia 18 de junho de 1974, vítima de um
ataque cardíaco.
Narrado de forma linear
cronológica pelo viajante que conhece Beremiz Samir na estrada para Bagdá, o
livro é dividido em 34 capítulos. Tem também um apêndice com explicações mais
detalhadas dos problemas, além de um glossário com os significados das palavras
estrangeiras e um índice com pequenas biografias de autores, personagens
históricos e matemáticos citados pelo autor. Algumas das ilustrações são de
cenas da própria estória, enquanto outras ajudam o leitor a visualizar os
problemas. E quem curte aqueles livros de colorir para adultos também vai
adorar, porque todos os desenhos são em preto e branco. Traduzido para vários
idiomas, O Homem que Calculava
conquistou em milhares de avaliações do Goodreads a merecida média de mais de
quatro estrelas. É o maior sucesso de Malba Tahan.
Mais do que uma obra sobre
números, O Homem que Calculava é uma
estória sobre amizade, compaixão, lealdade, amor, generosidade etc. Mas, acima de tudo,
é sobre a importância dos estudos, e a diferença que o conhecimento faz nas
nossas vidas. Ela renderia uma bela adaptação para uma série em formato de desenho animado (alguém precisa enviar a sugestão para Carlos Saldanha!). Esse livro não te transformará num grande matemático da noite
para o dia, mas sua leitura sempre será um passo decisivo na luta de qualquer
pessoa contra a numerofobia. E essa foi a grande contribuição de Malba Tahan
para a cultura brasileira.
Bibliografia de Malba Tahan (ordem cronológica):
- Céu de Alá (1927);
- Lendas do deserto (1929);
- Mil histórias sem fim volume I (1931);
- Mil histórias sem fim volume II (1931);
- Lendas do céu e da terra (1933);
- Lendas do oásis (1933);
- Matemática divertida e curiosa (1934);
- Maktub! (1935);
- O Homem que Calculava (1938);
- Lendas do povo de Deus (1943);
- Minha vida querida (1951);
- Aventuras do rei Baribê (1954);
- A caixa do futuro (1958);
- Novas lendas orientais (1959);
- Salim, o mágico (1970).
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Resenhas
Confesso que não me atraiu muito essa obra.
ResponderExcluirMas acredito que pra quem curte o gênero, seja uma boa pedida :)
A leitura me parece ser interessante. Com uma proposta bacana.
Beijos,
Caroline Garcia
Como eu disse, nem todo mundo curte. Isso é normal. E já faz um bom tempo que esse livro deixou de ser meu favorito. Mas ele sempre será um marco na minha vida, por ter despertado essa curiosidade, essa vontade de aprender cada vez mais e conhecer coisas novas. Por isso fiz questão de estrear na Academia com essa resenha.
ExcluirBeijos
Já tinha escutado falar sobre o livro, porém não sabia que ele era mais paradidático.
ResponderExcluirÉ mais uma forma de aproximar os alunos para matemática e história, né? Afinal, de certa orma, o que você achou um defeito, achei que era mais uma forma hilária de entreter.
“Saber de cor não é saber: é conservar aquilo que se deu a guardar à memória.” (Michel de Montaigne)
cheirinhos
Rudy
http://rudynalva-alegriadevivereamaroquebom.blogspot.com.br/
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Foi até difícil classificar essa obra. É um infanto-juvenil de aventura no estilo das Mil e Uma Noites, um paradidático claramente escrito com o propósito de ensinar matemática, e também um livro fortemente moralizante. Como rotular algo assim?
ExcluirQuanto ao defeito, eu também pensava assim. Na primeira vez que li, achei o máximo. Só anos depois fui pensar nisso. "Cara, que leseira! Por que ele não contou as cabeças?"
Oi.
ResponderExcluirGostei bastante da resenha, mas essa obra não me chamou muito a atenção não.
Mas ainda assim vai apara minha lista porque preciso de livros assim, principalmente para me adaptar melhor a matemática que tenho que estudar bastante, gostei de saber que o livro não se habilita apenas aos cálculos, espero desfrutar e me divertir um pouco com a leitura.
Bjs.
Obrigado! Espero que você goste. É um bom começo para quem quer aprender, mas ainda tem dificuldade de enxergar a beleza da coisa. Malba Tahan costumava dizer que a matemática é a matéria mais fácil de todas, porque ela nunca muda. ;)
ExcluirFui ter apresso pela leitura já na adolescência (influenciada por Harry Potter) e esse gosto só se manisfestava por leituras que fazia para fins pessoais, pois se tratava de leituras obrigatórias a vontade de ler caia muito. O Homem que calculava é um livro que não conheço, mas achei a sinopse muito interessante. Tudo que o autor propõe é tão diferente desde a ambientação, a história de vida do protagonista e até em como a matemática entra na trama. Mas a narrativa, por trazer algumas palavras mais esquisitas, como você mesmo citou, pode atrapalhar na fluidez da leitura para alguns leitores!!
ResponderExcluirEntendo. Leituras obrigatórias são um saco. Felizmente ganhei esse livro de presente. Apesar de ser paradidático, não vejo muitos professores usando ou cobrando essa leitura em sala de aula. Graças a Deus! Se eu tivesse lido por obrigação, talvez não tivesse curtido tanto.
ExcluirE não se preocupe com as palavras esquisitas. Se você leu Harry Potter, já deve estar acostumada com essas coisas. Afinal, boa parte daquelas palavras mágicas vem do latim. Você vai tirar de letra.
vamo transar
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