RESENHA - O Escravo de Capela (Marcos DeBrito)

Ficha técnica:
Referência bibliográfica: DEBRITO, Marcos. Escravo de Capela. 1ª edição. Barueri/SP, Faro Editorial, 2017. 285 páginas.
Gênero: Terror;
Temas: Escravidão, folclore, assassinatos;
Categoria: Literatura Nacional
Ano de lançamento: 2017













“Tendo as costas do escravo como tela, o feitor pincelava de vermelho o seu escárnio. Naquela aquarela abstrata de sangue e suor, a dor encontrava bem o seu contorno.
Sabola não conseguia mais gritar. A consciência já quase lhe escapava quando o sino da pequena capela balançou. O alerta sonoro indicando o início da celebração religiosa foi o que impediu o castigo daquela tarde de se tornar uma execução.”
*Escravo de Capela (pág. 13).


O ano de 1792 foi o auge da era colonial brasileira. Um momento onde a produção de açúcar das fazendas de cana faziam seus donos prosperar, enquanto que os reais trabalhadores, aqueles que traziam dinheiro aos bolsos dos senhores de engenho sofriam. Os homens, escravos, negros, que trabalhavam dia a dia debaixo de sol forte eram constantemente açoitados pelos seus senhores ao menor sinal de “moleza”, enquanto que as mulheres se submetiam a todo e qualquer desejo dos mesmos.
Incontáveis eram os negros que sofriam as truculências por qualquer rebeldia. Sangue era derramado na melhor das hipóteses. Na pior, mutilações marcavam para sempre o corpo do transgressor e a morte era uma opção aceitável em meio a todo o sofrimento e o sonho quase impossível de liberdade.
Em meio a esse cenário, uma família é assombrada pelos fantasmas do passado, que insistem em voltar para assombrá-los em um conflito que parecia enterrado, mas que ao voltar, ameaça destrancar um segredo capaz de condenar a todos.
E ainda há a ameaça do monstro.
O Escravo de Capela inicia apresentado aos leitores o jovem Sabola, um escravo recém chegado do Congo à Fazenda Capela que descobriu logo no seu primeiro dia de trabalho forçado o que realmente significava ser um escravo e o quanto seus senhores poderiam ser cruéis. O jovem, por não entender o idioma local e por não ter sido alertado a respeito da truculência dos capatazes, foi severamente punido apenas por entoar uma canção no dialeto de sua região e por desobedecer as ordens de Antônio Segundo, o filho do dono da Fazenda Capela. Depois de quase morrer de tanto apanhar, Sabola começou a entender da pior maneira possível como era a dinâmica da fazenda. Nesse ínterim, ele conhece Akili, um escravo aleijado que nunca saia da senzala. O velho viu um grande potencial na rebeldia de Sabola, já que este queria fugir a qualquer custo. Juntos iniciaram um plano perigoso para conseguir a tão sonhada liberdade.


“- Escravo aqui só tem direito a duas coisas - continuou: - Primeiro: não tem direito a nada! E segundo: não reclamar desse direito. Se tem negro que discorda, para quem ainda não sabe, domesticar os selvagens é a função pela qual eu tenho mais apreço.”
*Escravo de Capela (pág. 12).


Conhecemos também os membros da família Cunha Vasconcelos. O Senhor das terras e patriarca Antônio Batista, seu filho mais velho Antônio Segundo e o recém chegado Inácio, o caçula que saiu do país para estudar medicina. A história dessa família é cercada de segredos e desavenças. Batista sonhava que os filhos pudessem tocar juntos a fazenda, Antônio odiava o irmão mais novo, pois queria a fazenda para si, além de não suportar a complacência dele para com os escravos e Inácio repudiava a forma como os dois tratavam os escravos e foi embora para fugir de qualquer responsabilidade para com a família. E por conta disso ele renegava qualquer tentativa do pai de fazê-lo tocar os negócios da fazenda. Já a matriarca da família, Maria de Lourdes havia falecido há muitos anos. Também são apresentados na história Conceição, a escrava mais velha da fazenda e Damiana, a protegida de Conceição, que ficou órfã assim que nasceu e nunca conheceu o pai; e alguns peões da fazenda, que ajudam os Vasconcelos a tomar conta da fazenda e controlar os escravos.
A história se divide em dois núcleos: a dos escravos, em especial, a de Sabola e Akili e a da família Cunha Vasconcelos. O primeiro núcleo aborda todo o sofrimento que os escravos passam na fazenda e o plano de fuga que ambos criaram para dar a liberdade para Sabola. E preciso dizer o quanto fiquei horrorizado com tudo que li. Claro que eu sabia que naquela época os negros sofriam todo tipo de maldade que só a mente do ser humano é capaz de imaginar e conceber, mas nunca tinha lido uma história tão pesada sobre o assunto. Curto muito as narrativas do Marcos por ele não fazer rodeios e entregar ao leitor uma narrativa nua e crua e ainda mais por utilizar registros históricos para dar ainda mais veracidade para o que está narrando. Não se trata apenas de uma ficção. Algumas coisas retratadas realmente aconteceram e isso que é, pra mim, impactante na história.


“- Existem sacrifícios muito maiores do que o tempo perdido - continuou. - Sacrifícios que você se arrepende para o resto da vida de ter que fazer.
Com o prego devidamente oculto, Akili reparou que a expressão desiludida de um homem derrotado permanecia no rosto do jovem
- Melhor você dormir, Sabola. Sonhar ainda é uma das poucas coisas que os brancos não tiraram da gente. Isso é o mais perto da liberdade que você vai conseguir chegar esta noite.”
*Escravo de Capela (pág. 69).


O segundo núcleo aborda todos os conflitos da família Cunha Vasconcelos e aqui temos a parte “romântica” da obra: o caso de amor proibido entre Inácio e a escrava Damiana. Não que fosse proibido ir para a cama com uma escrava e Antônio Segundo deixa isso muito claro, já que ele estuprava uma escrava da fazenda. Porém, a coisa entre os dois ficou maior, mais intensa e mais perigosa do que apenas noites de sexo. Entendam que naquela época, um branco ter um relacionamento afetivo com um negro era motivo mais que suficiente para jogar o nome de uma família na lama. E é com base nesse romance que a roda dos acontecimentos gira e pouco a pouco os segredos começam a ser desenterrados do túmulo do qual o patriarca Batista fazia questão de que ficasse lá para sempre.


“Eram poucos os passos que os separavam, mas o jovem aproximou-se lentamente, sem agitação. Apesar de estar seguro da conquista, até mesmo o mais preparado dos homens se embaraça na presença da mulher desejada.
Damiana não protestou quando Inácio invadiu o espaço destinado apenas àqueles a quem se confiam os mais secretos pensamentos. A garota podia sentir o calor do rapaz misturando-se ao seu e por fim levantou o rosto para encará-lo com igual resplandecência no olhar
O braço de Inácio alcançou a porte e, com um movimento suave, ele a empurrou contra o batente, refugiando-se com Damiana em seu quarto.”
*Escravo de Capela (pág. 16).
Agora vamos para a parte que interessa: O Saci. Não deve ser segredo (se for, não é mais, sorry) que o autor se baseia no folclore do Saci para montar sua tenebrosa narrativa, assim como o fez com o Lobisomem em “À Sombra da Lua”. Não darei spoilers, mas posso adiantar que o Saci de Marcos é uma criatura horrenda, nada parecido com aquela figura mostrada nos gibis de Maurício de Souza. Um monstro saído dos cantos mais fundos do poço mais escuro do inferno. Uma coisa antinatural que desafia a lógica e a sanidade dos azarados que ficam em seu caminho. Um ser que não faz distinção entre bem e mal; ambos são alvos de sua fúria assassina. Fiquei impressionado como o autor recriou o mito, dando toques próprios a respeito de sua concepção, como por exemplo, do porque ele só tem uma perna ou do porque do nome. E a surpresa aqui vai para o fato de que o autor não explora um, mas DUAS lendas do nosso Folclore. No entanto, não vou dizer quem é ou o que é o outro.


“O peão identificava bem uma silhueta que se debatia para levantar, mas ainda tentava decifrar o enigma do seu contorno quando outra figura estranha começou a sacudir as folhas dos arbustos pela mesma trilha. Parecia o corpo de um homem que avançava em direção ao animal caído, mas seus movimentos eram descompassados e pecava-lhe o equilíbrio. A cada progressão, interrompia seu trajeto para se amparar na firmeza dos troncos. Era como se estivesse saltando, em vez de caminhar.”
*Escravo de Capela (pág. 108).
As definições de "Olha o bicho vindo" foram atualizadas com sucesso. Crédito:  Ricardo Chagas


O autor utiliza de recursos dentro da narrativa para avisar ao leitor que o Saci está vindo. Assim como fez em “À Sombra da Lua”, somos alertados com certa antecedência que “o bicho está vindo”, de uma forma semelhante (dadas as devidas proporções) ao que acontece nos filmes de terror, quando toca aquelas músicas instrumentais que te dizem: lá vem o Freddy, lá vem o Jason. Eles estão perto e alguém vai morrer. E esse recurso nos deixa apreensivos e ansiosos porque SABEMOS que sangue vai espirrar nas próximas páginas. E por falar em sangue, é bom estar preparado, pois se tem algo que não falta é sangue. As bordas do livro não deixam mentir: tem muito sangue, muitas mortes, muita violência.
Nem preciso falar das reviravoltas (mas vou falar mesmo assim). A cada nova obra o Marcos brinda seus leitores com um plot twist de tirar qualquer chapéu. Uns são mais perceptíveis e se você prestar atenção, consegue adivinhar (e ficarmos no sentido um Sherlock da vida pela dedução); outros fazem você fechar o livro bruscamente e soltar um xingamento de excitação. E em O Escravo de Capela existe uma reviravolta tão “Oh my god” que teria feito o Jig Saw convidar o autor desse plano mirabolante para fazer uma dupla com ele em algum Jogo Mortal. Pensa que louco seria.
Diante tudo que falei, só tenho duas ressalvas: a primeira, é que eu esperava que o Saci fosse mais… ativo. Sem spoilers aqui, mas quando ele aparece, o mundo cai, sempre. Pessoas são assassinadas sem distinção. Os sobreviventes ficam apavorados sem saber como reagir a ameaça. Porém, ele é uma criatura coadjuvante dentro da trama. Não é a narrativa que gira em torno do Saci, é o Saci que gira em torno da narrativa. Esperava um pouco mais dele. A história não é sobre o mito do Saci. É do que pessoas são capazes de fazer por amor… e por vingança. Então (ao menos pra mim) a história não brinca tanto com o terror quanto eu imaginei que seria (sério, estava imaginando umas coisas bem malignas), já que boa parte dos núcleos da obra são sobre as pessoas e não sobre o monstro. Mas isso não é nem de longe um problema ou um erro do autor, nada disso. Foi uma expectativa que criei antes mesmo de começar a ler. Algo que está em mim desde “À Sombra da Lua”. Quem leu sabe o quanto o Lobisomem foi "o centro das atenções" dentro da história. Imaginei que o Saci teria um papel semelhante. Não chegou a ser uma frustração, só algo como "poxa, queria mais".  
A segunda é que senti que ficou um pouco vago a “magia” por trás do Saci. O que eu acho interessante na escrita do Marcos é que nada é de graça. Tudo tem uma motivação para acontecer e que em algum momento da narrativa isso é explicado (e eu ficava “Minha nossa senhora das escritas fodas, então foi isso que aconteceu”), mas senti que ficou faltando “algo” no que diz respeito a criação do Saci. Não sei se foi eu que deixei o "algo" passar, mas que pra mim ficou vago, ficou.



O livro é narrado em terceira pessoa. Como dito anteriormente, acompanhamos a história em dois núcleos que a todo momento se cruzam. Vamos conhecendo aos poucos cada personagem, suas vontades e motivações e a medida que as pessoas vão morrendo, seus passados (e muita gente morre!). A fluidez da narrativa é boa, mas como o autor tomou o cuidado de ambientar não só o cenário, mas os personagens à época tratada, existem palavras mais rebuscadas que podem exigir um dicionário por perto. A relação temporal é linear, contudo existem algumas passagens no livro que contam o passado de certos personagens e acontecimentos que fazem conexões diretas com o presente.
A diagramação de um modo geral está excelente. Não canso de elogiar o trabalho da Faro nesse quesito. Os livros por si só são lindos e bem formatados. A revisão também está boa, não me lembro de ter visto erros. A parte visual do livro é uma obra a parte, com belas ilustrações no início. As folhas do livro em vermelho já deixam avisado o que os leitores podem encontrar e a capa com o nome do livro em relevo está simplesmente sensacional. Parabéns aos envolvidos e parabéns a Faro por dar sempre uma atenção especial para cada autor de seu catálogo.

Vejam o cuidado que a editora tem com a diagramação do livro. Lindo demais, não acham? 💗
Um obs: eu acho, só acho, que a Faro está montando uma espécie de “Liga do Mal”. Já repararam? Deem uma olhada nos títulos já lançados pela editora (em especial, os nacionais) e talvez vocês tenham a mesma impressão que eu.
Marcos deBrito é um cinesta premiado e vem sendo considerado um grande expoente na renovação e produção de filmes de suspense e terror no Brasil. Começou a escrever histórias que lhe vinham à cabeça apenas para lidar com seus próprios medos, na esperança de esconjurar seus demônios e calar as vozes que não o deixavam em paz. O destaque de sua produção está na crueza como retrata as diferentes faces do mal, mas não é apenas isso. Todas as suas histórias contèm elementos de mistério e surpresas que desafiam o público a desvendar a mente dos personagens. Diretor, roteirista e escritor, O Escravo de Capela é seu terceiro livro publicado. Condado Macabro, seu primeiro longa-metragem, foi lançado nas salas comerciais em 2015 e vem mostrando a força de sua narrativa em festivais por todo o país e no exterior.
Marcos deBrito para mim é um dos maiores escritores do atual terror nacional e se você é fã do gênero, precisa (mesmo) conferir o trabalho dele. Ama reviravoltas? Ama ser surpreendido por uma revelação bombástica? Um plano mirabolante? Nem pense duas vezes, leia. Para os leitores que adoram histórias que retratam o nosso folclore, essa é uma boa pedida. Não apenas pelas menções ao mito do Saci, mas pela reinvenção do mesmo. Porém, prepare o coração. Embora o livro não seja assustador (ou eu que não me assusto fácil, vai saber), ele é bem (mas BEM mesmo) violento e visceral em suas descrições. Não poupa detalhes, não procura se censurar para poupar o leitor. Alguns colegas blogueiros inclusive relataram terem tido pesadelos depois de ler a obra. Então vocês podem tirar por aí o nível dessa narrativa. E por ser ambientado em uma época terrível da nossa história (a escravidão), é bom estar ciente que racismo, tortura, estupros e assassinatos são coisas recorrentes nas páginas deste livro.
Por fim, deixo minha recomendação para quem aposta na nossa literatura. Marcos deBrito é um exemplo formidável de que a literatura nacional é tão boa (às vezes melhor) do que o que vem de outros países. Basta você dar uma chance.  
Ah, quase me esqueço: não espere um final “e viveram felizes para sempre” nessa história.


Bibliografia de MARCOS DEBRITO (ordem cronológica):


Livros:

  • À Sombra da Lua – Editora Rocco (2014).
  • Condado Macabro – Editora Simonsen (2016). 
  • O Escravo de Capela – Faro Editorial (2017).

Luciano Vellasco

Sou o cara que brinca de ser escritor e se diverte em ser leitor. Apaixonado por livros, fotografia e escrever. Jogador de rpg nos domingos livres, colecionador de Action Figures e Edições Limitadas de jogos. Cinéfilo, amante de series e animes. Estou sempre em busca de conhecer novas pessoas e aprender com cada uma delas e por último, mas não menos importante: um lendário sonhador.
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Comentários
5 Comentários

5 comentários :

  1. Excelente resenha! *--* Adoro o modo como você externa suas opiniões, sem comprometer a obra. Li os primeiros capítulos do livro e já estou vidrado para saber qual será o desfecho da trama. E concordo com relação ao cuidado da editora Faro. As ilustrações e a diagramação são impecáveis, o que torna a leitura ainda mais agradável e fluída. o/ Parabéns pela resenha!

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    1. Muito obrigado pelas palavras, Robson! Fico feliz que você curta minhas resenhas. Tento ao máximo fazê-las com muito carinho e respeito para com o autor da obra. Abraços amigo!

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  2. Luciano!
    Que o Marcos é um autor fenomenal, é inquestionável.
    E ver que soube usar o folclore local, junto com fatos realmente existentes e criar uma ficção espetacular e carregada de assombro, faz com que queira ler logo mais esse livro dele.
    “Não há lugar para a sabedoria onde não há paciência.” (Santo Agostinho)
    cheirinhos
    Rudy

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  3. Oi Luciano,
    O nosso país além de ter muita história sobre colonização e escravidão (é última bem retratada no livro), também é rico em lendas e mitos. Quando era criança eu ouvia muitas lendas e as achava assustadoras, mas o que Marcos propõe aqui vai além e explora o terror ao extremo trazendo a tona o medo do leitor. Em um único livro Marcos mostra diferentes facetas, com lenas, romances, luta pela liberdade e dramas familiares e faz jus a sua boa reputação como escritor que venho descobrindo cada vez que leio uma resenha de uma obra sua. A editora está de parabéns, pois se não tivesse me interessado pela história compraria o livro por causa da edição impecável que fizeram.

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